Claudio Pereira dos Santos
permanecia ereto no rio de correnteza leve, totalmente submerso, rígido e
endurecido pela morte recente. Uma comunidade de algas verde-escuras de fios
longos cobria cada centímetro de seu corpo esguio. As algas dançavam na
densidade da água e Claudio continuava imóvel.
Sua irmã o alertara para os perigos
de suas práticas amorosas e sabia que agora ele estava morto e coberto por
algas dançantes em um rio claro à 13km como se fosse a carcaça velha de um barco
inútil. Janice dos Santos Gusmão preparou o almoço do marido antes das onze e
meia como toda manhã, depois lavou as mãos que cheiravam a alho, colocou a mesa
e saiu de casa com expressão grave.
Um ou outro vizinho tentou
chamar-lhe a atenção para saber notícias do desaparecido:
- Está no rio, seu Clóvis. Vou buscar aquele
desmiolado antes que vire comida de piranha.
Encontrou-o duro feito pedra.
Entrou no rio vestida e, com a mesma agilidade com que descascara o alho para o
almoço de Gusmão, descascava o irmão das algas verde-escuras enquanto dizia de
suas muitas tarefas diárias, dos problemas com as crianças, da doença da mãe,
das cachaças do marido e...
- e você, Claudinho, que não cria juízo!
O tom enérgico de Janice foi se
perdendo na correnteza leve do rio claro, na maciez das algas lânguidas, na
frescura da água viva e, minutos depois, ela arrancava as plantas aquáticas com
suavidade e ternura, falando ao irmão morto sobre as molecagens das crianças e
a carência triste da mãe. Sorriu ao ver a marca em riste entre as sobrancelhas
grossas do defunto tomar um tímido contorno róseo. Aquela mancha vermelha de
nascença desaparecia na pasmaceira do dia-a-dia, mas marcava com um rubro brutal
a testa de Claudio na hora do ódio ou do amor, do choro ou do riso, do medo ou
da coragem.
A marca ficava cada vez mais
vermelha, anunciando que reaparecia no afogado a animação de vísceras e
artérias e conexões neuroquímicas e funções gastrointestinais e fluxos
linfáticos e a cor dos olhos e a boca entreaberta para constranger os pulmões
alagados com o cheiro fresco do rio vivo. Vivo.
No caminho de volta, Janice
aplicou-lhe todas as repreensões, culpou-o pela condição da mãe - coitadinha, que só adoece de preocupação -
deu-lhe ultimatos de se empregar na usina, encontrar uma moça boa para casar e
parar de fornicar com mulher de cabra
bem armado por aí.
Claudio ouvia calado, caminhando
atrás da irmã, de cabeça baixa e olhos envergonhados.
Despediram-se na entrada da cidade.
Claudio abraçou Janice como quem se afoga. Janice relutou, mas repetiu, por
fim, o gesto infinito com o qual se unia ao irmão desde tempos imemoriais:
beijou-lhe a marca viva que carregava encarnada entre as sobrancelhas grossas.