Antes
era a inércia. Depois ficamos mais fortes, fugimos, voltamos e optamos pelas
relações interpessoais saudáveis. Teve terapia, bom senso, atividade física,
amizade verdadeira, comedimento, respeito e solidariedade. A estabilidade nem
era tão ruim assim. A sanidade mental se transformou em um reino confortável e
simpático onde confraternizávamos com um estilo sofisticado de abraços plenos
de sensibilidade que parecia amor. Acordamos transformados em seres tranquilos
que viajam juntos, se alimentam bem e bebem com moderação enquanto conversam
amenidades. Rondava-nos um abismo volátil que se liquefazia em copos quase
limpos. As vezes ficava um pouco escuro e essa quase-escuridão era boa. A
nostalgia, as angústias, os medos e nosso existencialismo afetado nos
cumprimentavam tímidos, pedindo espaço na mesa, mais um copo, por favor... Perdíamo-nos
– apenas temporariamente – depois tomávamos um banho, ouvíamos músicas sutis,
peças de teatro, a arte nos salvará de todo mal, amém, outro corte de cabelo e
o bom comportamento se reestabelecia com louvor. Nosso assunto era trabalho,
teorias, ideologias, atualidades e bons roteiros turísticos. O bar fechava as
portas para nós e íamos embora com a frágil sensação de que o equilíbrio era a
receita para uma boa noite de sono. Resguardados que estávamos por um universo
cuidadoso, vivíamos a leveza da semiconsciência impune enquanto nada –
absolutamente nada – acontecia. Mas a vida não permanece linear nem no mais
perfeito ecossistema. Não que fosse tédio, mas nós sempre soubemos que em algum
momento mandaríamos tudo isso à merda. Pedimos outra saideira, mudamos o rumo
da prosa, choramos e nos armamos de coragem. Que perigo... Não temos certeza,
mas parece que alguém tentou avisar “cuidado, coragem não presta”. O discurso
era ruim e a cerveja era gelada. A realidade foi ficando escorregadia, a
cadência de nossos passos instituiu um destino aparentemente certo e o caos
usou a iluminação exata para se instalar numa varanda ansiosa deste verão
apocalíptico. Decretamos oficialmente o fim do mundo. Decretamos
insistentemente durante uma noite inteira a morte da poesia e a instituição
imediata de nós mesmos como entidades soberanas do amor. Dois dias depois, a
destruição era aterrorizante. Balde, água, escova, vassoura, pano de chão,
desinfetante, tirar as cortinas, lavar as almofadas, esfregar as paredes, o
chão, as cadeiras, trocar a lâmpada e o resto vai pro lixo. Limpamos a cena do
crime. Acordamos transformados em seres imaculados pela manhã.
*Tristeza
não – Metá metá
Imagem: Obra de Salvador Dalí inspirada na Divina Comédia de
Dante Alighieri