Quem deixou a porta aberta?
Esqueceram de desligar o gás. Confirmou
por engano. Assinou sem ler. Dormiu quase o tempo todo. Pensou que estivesse
pronto. Perdeu o sono, o ônibus e as contas.
Dizem que ficou louco. Feito
Sartre, um viajante sem bilhete. Atravessou a vida por engano e guardou tão bem
os traços do destino para não perder que esqueceu onde, em qual gaveta, uma
pasta qualquer cheia de outros manuais velhos e pouco instrutivos.
Saiu sem avisar, andando rápido
para não flagelar a perna ruim. Tentou documentar os anos errantes com um
romance nunca acabado que rabiscava no fundo de restaurantes insalubres do
interior. Enviou alguns capítulos pelo correio à um escritor do sul que tentou
fazer chegar-lhe a resposta conclusiva de que se tratava da pior tentativa
literária dos últimos tempos, mas a carta nunca o encontrou.
Uma noite de outubro de 2008,
depois de dirigir quase doze horas ininterruptas com muita carga, tive a
impressão de vê-lo atravessar um cruzamento melancólico da entrada de uma
cidadezinha ao norte. Entrou em uma dessas casas de luz amarela e janela de
madeira, pisando o degrau com firmeza para levantar a outra perna em um
movimento brusco do corpo. Parece que mancava mais.
Aquela noite não dormi,
apavorado, e quis viajar mais doze horas direto para casa.
Minha mãe sempre olhava sua foto
na parede da cozinha com um certo embaraço enquanto coava o café:
- Nem a bengala ele levou...
Essa frase combinava com o cheiro
nostálgico que subia do coador de pano e com o suspiro constrangido que subia
da minha mãe em seu casaco de lã vermelho. Mas não combinava com um homem manco
que atravessava o cruzamento melancólico de uma cidadezinha ao norte, por isso,
nunca contei a ela.
No começo eu pensava em
procura-lo até o fim do mundo, pegá-lo pelos cabelos e arrastá-lo de volta com
toda a autoridade conferida a mim pelo papel extenuante de consolar minha mãe.
Depois, resignado até certo ponto, fiquei dramático: fantasiava encontra-lo
feliz e gordo, bem vestido e amado e, num ato de derrota e abandono, apenas
entregar-lhe a maldita bengala.
Mas, desde que comecei a
trabalhar com o caminhão, já não o procurava, embora pensasse sempre que iria
encontra-lo casualmente rabiscando seu romance ruim em um desses restaurantes
onde as vezes faço algo parecido com uma refeição.
Em janeiro do ano passado, encostei
em uma lanchonete modorrenta da insólita cidade de Monjolos, no interior de
Minas, com um calor dos infernos a torturar a todos, amaldiçoando o sol e a
ausência total de uma brisa que fosse. Então, senti o minuano da serra invadir
meu estômago embrulhado quando vi um homem de costas cuja altura oscilava ao
andar, diminuindo ao pisar com a esquerda, com um início de calvície discreta,
entrando no banheiro de divisória precária aos cinco metros de mim. Eu poderia
entrar no banheiro, arrebentar portas e descobri-lo esvaziando as tripas em um
vaso imundo. Poderia espera-lo em frente a pia antiga de ferro e cumprimenta-lo
com a naturalidade de quem reencontra um companheiro de estrada. Poderia ficar
sentado na cadeira de lata com meu prato de arroz, feijão e bife de porco para
vê-lo sair mancando e segurar o canto da divisória assustado ao parar
repentinamente por me ver e falsear o passo com a esquerda.
Mas o calor de Minas, o frio do
estômago, aquela divisória, as horas no caminhão e o cheiro de cebola frita não
me permitiram nada. Os sons foram ficando muito distantes, as mãos dormentes,
os olhos pesados e a lanchonete inteira foi se liquefazendo em volta do meu
desespero. Olhei até o último segundo para aquela divisória antes de desmaiar
sobre a mesa de lata e ser socorrido por companheiros de estrada que riam de
minha palidez e faziam piada sobre o poder mórbido da refeição servida.
Nunca vi quem saiu de traz
daquela divisória em Monjolos. Vasculhei-o e as proximidades, perguntei aos
quatro cantos, percorri ruas em total descontrole seguido por companheiros
preocupados que afirmavam que eu havia enlouquecido igual ao meu irmão.
Voltei para estrada e depois para
casa. Rodando os óculos na mesa enquanto minha mãe coava o café, acompanhei
seus olhos para a foto e, pela primeira vez em muitos anos, sua lamentação não
morreu em um suspiro:
- Nem a bengala... Ele nunca ficava sem ela.
Era o que diferenciava vocês dois... Ninguém saberia dizer quem era um e quem
era outro se não fosse o defeito da esquerda.
Duas semanas depois, ligaram de
um centro de atendimento qualquer de algum lugar de Minas Gerais.
Morreu sem perceber.
Providenciei tudo para o
transporte do corpo enquanto minha mãe chorava agarrada a maldita bengala.
No velório, era eu quem coava o
café com uma ou outra tia sádica que comentava a semelhança do morto comigo no
caixão.
- Vocês eram iguaizinhos. Não fosse o defeito
da esquerda...