quinta-feira, 2 de abril de 2009

Ofício nº 151079

Eis que um ilustre leitor resolveu entrar na brincadeira e escrever um Ofício em resposta ao que postei aqui no dia 19 de fevereiro de 2009. Reconheço o direito de resposta, por isso também o publico neste espaço. Sem data nem endereço, pois o recebi assim...


A senhora Estrela,

Declaro, senhora Estrela, para os devidos [e até indevidos] fins, que sempre fui péssimo com esses documentos burocráticos... péssimo em todos os sentidos; interpreto-os mal e, diante da possibilidade, ou obrigatoriedade, de repetir tal formulação, escorrego... como aquele nobre cavaleiro que “tropeça publicamente nos tapetes da etiqueta...”
Mas, como o assunto [e o objeto astronomicamente apaixonante que habita por detrás do oficio] é importante, tentarei expor com alguma clareza, que há de capengar aqui ou ali, em razão das emoções, essas meninas serelepes que ficam aqui, pulando, cantando, gritando, fazendo um carnaval das minhas linhas tortas.
Já está confuso... Bem, já que o caso “requer” circunspeção, deixemos que esta humilde frase venha a ser como aqueles homens magros, bem vestidos, que se curvam para anunciar a chegada da “realeza”...
Cada linha do seu oficio feriu-me como uma lança em chamas, ferindo coração e alma a um só tempo...
Já das mais pueris construções sintáticas e semânticas nascia em mim um rio caudaloso e profundo de emoções, que empurrava o barco frágil e rude da razão para o espaço.
Que insultos atrozes eram aqueles: “só porque está mortificado de vergonha por ter batido no peito se dizendo um exemplo de coragem e força...”
A um só tempo via eu o amor e orgulho feridos dentro de mim... E aquela mania de defender-se ainda antes do ataque..., de prever, de resguardar, já estava a muito atuando no meu espírito de menino... Não haverá mais frases em que eu não receba com pedras nas mãos... Aquele estranho circuito, visão, assimilação, sinapse, projeção... Todo protegido por um exército de guardiões insolentes e insolentes...
Que aprenderam desde cedo a suportar as dores em silencio... e a disfarçar o medo.
Que aprenderam desde cedo a “ter a resposta antes mesmo de ouvir a pergunta”.
Que aprenderam a esconder os sentimentos.
Que aprenderam os valores machistas de uma cultura superficial e vazia.
Que “pousaram” e “desposaram” dogmas intrínsecos aos símbolos fabulosos das fadas e de uns falsos demônios...
Que aprenderam a ouvir Não e calar.
Que aprenderam a rastejar 23:59hs para pousar de Deus no derradeiro minuto...
Que aprenderam a estar eternamente ao lado da porta que nunca se abrira...
Que aprenderam a julgar antes de sonhar...
Que aprenderam a temer o erro... e nunca arriscar...
Que aprenderam que tudo é competição, e que não há lugar para perdedores.
E todo o meu eu, então, odiava-a, crucificava-a, senhora Estrela... por expor assim deliberadamente, o maior ultraje a que um homem orgulhoso como eu pode ser submetido: fraquejar!
Expor a maneira como calei, como fiz do meu amor instrumento, bússola e nau...
Expor a maneira como a minha letargia fez de mim um dos mais nobres cúmplices da arte de engolir sapos...
E o mais duro... Ver estampado nas suas frases o brasão da descoberta: Eu era mais um covarde como todos os outros milhares que se disfarçam muito bem por aí...
E isso me deprimiu com uma amargura que o próprio Dostoievski não saberia exprimir...
Odiava-a com todas as minhas forças e, se pudesse, fulminaria todos os seus textos e existência... Extirpava, rasgava, assassinava!
Até que por descuido, algum querubim folgazão primiu alguma tecla sedentária, e que não opôs a mínima resistência...
E esta imagem saltou aos meus olhos...


E toda a “PORRA” do meu orgulho...
Do meu medo...
Da minha vontade de “ser eu mesmo”...
Da minha ganância...
Da minha vaidade,...
Da minha esperança de ser justo...
Da minha insensatez...
Toda a maturação estética...
Toda a puerilidade filosófica...
Toda melodia simplória...
Todas as ondas de um oceano contaminado....
Todas as asas da liberdade outrora encarceradas...
Todas as frustrações reavivadas pela inoportuna consciência...
Todas as tentativas fracassadas...
Todos os “moinhos-de-vento”...
Todas as musas disfarçadas de humanidade...
Todas as mentiras disfarçadas de verdade...
Todas as palavras ocultadas...
Todas as flechas erradas..
Todas as mãos que nunca se tocaram...
Todos os lábios que nunca se beijaram...
Todos os artigos [e ofícios] escritos...
Todos...
Todos...
E tudo dentro de mim...
Ajoelhou-se para contemplar o milagre de um amor...
Que tem capelo...
Que tem óculos...
E que tem tudo que eu não poderia ter...
SEM TER VOCÊ.


O VEREDICTO É VERDADE E DOU FÉ.

ASS: Menino da Estrela.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Na madrugada densa de chuva


Olhou a chuva na luz do poste pensando nela e em tudo que haviam conversado.
Quis ligar para saber como ela se sentia...
Mentira. Queria ligar para dizer a ela como estava se sentindo, pois não conseguia ter qualquer sensação e não contar a ela.
Sentir estava sempre relacionado a ela e aquela chuva torrencial o fazia sentir com mais intensidade.
Não queria olhar para dentro daquele quarto vazio, pois seria igual olhar para dentro de si mesmo e não vê-la sabendo que todos os seus livros e CDs estavam impregnados dela, do cheiro, do sorriso, da voz e da falta que ela faz.
Atravessou o quarto e desceu as escadas.
De repente viu-se na calçada ao pé do poste sentindo a chuva molhar seus cabelos que escorriam acariciando seu rosto.
Sentiu a camisa colando na pele.
Sentiu frio.
Sentiu-se vivo.
As gotas massageavam os músculos tensos de amor dos seus ombros, a dor foi passando e ele decidiu que nunca mais ligaria, nunca mais a veria em livros e CDs, nunca mais... Nunca mais.
Correu os poucos quarteirões que separavam sua casa da dela. Os tênis pesados de chuva, a pele arrepiada de frio e de ansiedade e os músculos tensos de amor.
Gritou seu nome na calçada sem se importar com a hora avançada da madrugada densa...
Ela estava na varanda e não se espantou ao ver o homem que amava naquela madrugada chuvosa...
Abraçou-o e o ouviu dizer que não a queria em livros ou CDs ou dentro de si. Queria-a nos braços, na pele, sob a chuva torrencial...
Iluminada pela luz de um poste na madrugada densa de chuva.

Foto de Roger Rodrigues – o futuro Historiador a quem dedico este humilde texto escrito ao som de True do The Frames.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Cardiopatia


As pessoas atribuem o amor ao coração...
Nem sei por quê! Alguém sabe?
O fato é que sou cardiologicamente imune ao amor.
Mas, como o organismo humano é capaz de se adaptar a (quase) tudo, o meu deu um jeitinho nesta deficiência e transferiu a responsabilidade para um órgão que curiosamente aceitou a missão.
Meu estômago assumiu a administração do departamento sentimental.
É um desastre.
Não estou aqui me queixando... É apenas o depoimento de alguém que vive em conflito com as próprias vísceras.
O estômago não dá conta sozinho, por isso envolve a cabeça e todo o sistema respiratório que, diga-se de passagem, constitui-se de órgãos absolutamente ignorantes no assunto.
Isso aqui virou um pandemônio.
O estômago perdeu o controle e a autoridade.
O sistema respiratório está desesperado.
E a cabeça só faz doer.
Preciso imediatamente de homeopatia...
Ou de você.

sábado, 21 de março de 2009

Heroes


Você sempre me faz chorar.
Principalmente quando passa muito tempo longe.
Sinto-me péssima.
Vem aquela sensação de que você está cada vez mais afastado de mim. É quando sua falta dói...
Tenho aquelas noites degradantes de lágrimas, dezenas de cigarros e músicas melancólicas.
Sempre chego ao trabalho com os olhos inchados e o estômago em frangalhos na manhã seguinte. Dia desses uma amiga perguntou o que me aconteceu e eu disse que fui exposta por muito tempo à música ruim e que sou alérgica.
Às vezes, conto para alguém as coisas que você me diz.
Aí, eu me sinto um pouco melhor.
É por isso que valorizo tanto os amigos: eles fazem tudo parecer mais simples.
Lamentando-me para algumas amigas, contei-lhes sua frase memorável:

“SERÁ QUE PELO MENOS UMA VEZ NA VIDA NAO PODEREI DEIXAR DE
SER O SUPER-HOMEM...
E ESPERAR QUE ALGUEM ME SALVE???”

Foi o suficiente.
Agora tenho vários apelidos por aqui:
Mulher-Maravilha, Tempestade, Electra, She-ra, Xena e até a Sara... aquela do Cavalo de Fogo.
Daí formou-se a cantoria daquela música da abertura com vozes tão desafinadas quanto a da própria mulher que cantava no desenho.
E da Sara pulamos para a Caverna do Dragão, Tom e Jerry, Pica-Pau, Ursinhos Carinhosos, Muppets, Popeye e toda a fauna animada da saudosa infância.
Então, você se perdeu no meio do Mestre dos Magos, do Gonzo, Brutus, Leôncio e mais uma legião de personagens fantásticos...
E as amigas transformaram tudo em algo muito simples:
Nosso amor mal sucedido é apenas uma estória...
E nós dois, apenas personagens iguais a esses de desenhos animados que víamos há muito tempo atrás.

“We can be Heroes
Just for one day”...

terça-feira, 17 de março de 2009

Medo

Descobri que monstros existem sim!
Depois que a delirante infância foge assustada, deixamos de acreditar neles...
Tenho 22 anos, a minha infância já fugiu há algum tempo.
Mas, sei que eles existem e estão por toda parte.
Antes apareciam apenas a noite, na escuridão, em meio ao sono...
Antes eles não tinham cor definida.
Estavam apenas nos pesadelos...
Tinham diversos nomes, eram disformes e petrificados.
Agora são reais.
Vejo-os durante o dia, iluminados pela luz do sol...
De olhos bem abertos...
Usam máscaras e palavras de anjos, são gordos, simples e até simpáticos.
Têm mãos, cabelos e sorrisos...
Carros, casas, nomes, datas e legendas...
Amam, se casam e têm filhos.
Atacam quase sempre os olhos, mas às vezes também atingem o sistema respiratório.
Aprisionam músicos e personagens literários em cavernas frias e escuras.
São muito violentos e odeiam a humanidade.
Um deles atacou meus olhos...
Mostrou-me seu verdadeiro rosto.
Tenho medo de monstros.
Eles estão por toda parte.

Existem monstros de verdade.

Escultura de Jane Alexander.

terça-feira, 10 de março de 2009

Vem...


O garoto está tentando se esconder...
O medo o faz chorar.

“Vem aqui, menino. Eu sei de todas as coisas...
Tenho uma casa, um carro e um emprego.
Uma esposa submissa, uma filha linda e uma mãe zelosa.
Vem aqui que eu te ensino a crescer e ser igual a mim.
Assim, você nunca mais sentirá medo, será respeitado pela sociedade e por seus familiares e visto por todos como um homem bom, forte e virtuoso.
Vem, menino... que eu entendo seu medo.
Também já fui menino...
Também já me escondi.
Mas, veja o homem feliz que me tornei.
Hoje, eu sei de todas as coisas. Conheço toda a história humana, toda ciência e toda teoria.
Sou culto, criativo e eficiente.
Domino todas as artes e as pessoas se calam para me ouvir.
Vem que eu te ensino toda sua vida...
Pare! Homem não deve chorar assim... Alguém pode ver.
Não se preocupe, vou lhe ensinar qual é o melhor lugar para as lágrimas.
Veja o paraíso que lhe apresento: uma vida linda...
Ensaiada, decorada e só depois vivida.
Sem sobressaltos nem paixões dolorosas.
Sem imprevistos nem improvisos.
Vem, menino...
Que aqui o ar nunca falta e nossas máscaras são bem bonitas.
Nosso teatro é comovente e nossos valores são universais.”


O que ninguém sabia
É que era isso
Que o menino mais temia.


Tela de Ray Caesar.

quinta-feira, 5 de março de 2009

(Pre)texto


Eis o meu aparato técnico: uma garrafa de vinho, um maço de cigarros e a lembrança fiel da cena desta tarde.
Absolutamente sozinha e disposta à só abandonar os cigarros e a garrafa depois que tudo estiver definitivamente claro pra mim.
O que aconteceu, como aconteceu e por que aconteceu.
Até parece pretexto pra me embriagar sozinha!
Mas, é uma meta. Um objetivo coerente e de fácil acesso.
É só eu ficar aqui o tempo necessário e pensar bastante. Ver e rever aquela cena quantas vezes for preciso e chegar a uma conclusão.
Vamos lá:
Você bateu a porta com força como sempre, mas dessa vez eu me assustei. Há tempos você não aparecia...
Pensei que meu coração estivesse acelerado por causa da sua presença, mas logo constatei que era por conta do susto.
Fui muito educada e gentil, igualzinho quando aquele técnico da vigilância sanitária aparece para pegar uns relatórios.
Aquele silêncio foi constrangedor, eu sei... Mas, é que eu estava tentando me lembrar de todas as palavras que eu queria tanto te falar, esperei tanto pra gritar, ensaiei tanto pra te dar...
Não consegui me lembrar! Que coisa estranha...
O jeito foi conversar sobre tudo e sobre nada...
O que era aquilo acariciando meus cabelos sarcasticamente?
Era a nossa apatia...
E a poesia, onde estava?
Morta.
Morta?
Não! Não pode ser... Quem a matou?
Você ou eu?
Isso não importa.
Está morta a pobrezinha e a culpa é nossa.
Já era hora dela morrer.
Foi por isso que eu me assustei quando você chegou batendo a porta. Foi por isso que eu nem me lembrei das palavras que passei um mês escolhendo pra você.
Foi por isso que eu quase te entreguei os relatórios e desejei um bom final de semana quando você ia saindo.
E eu não me senti feliz nem triste por vê-lo...
Não senti raiva de você, nem pena, nem carinho...
Meu coração simplesmente se recusou a participar daquela cena.
E eu não senti nada.
É isso! A poesia está morta.
Essa é a conclusão de tudo...
Será que agora eu devo chorar e guardar luto?
Não sinto vontade...
Devo respirar aliviada?
Ligar para todos os meus amigos e dizer que estou curada?
Também não é assim que me sinto...
Não sinto nada.
E alcancei a minha meta.
Mas, este vinho está tão bom...
Acho que convém eu pensar mais um pouco na cena e fumar mais um cigarro...
Quem sabe eu ainda verei você no fundo do copo?

...

(A outra metade da garrafa e uma carteira de cigarros mais tarde):

Não tem mais vinho nem cigarros...
Sabe quem eu vejo no fundo do copo?
Ninguém.
Uma garrafa é muita coisa pra mim. Estou totalmente embriagada, mal consigo ver o copo...
Vou pra cama...
Minha cabeça está pesada e minhas pernas estão moles...
Preciso parar de beber.
Não há ninguém no fundo do copo.
A poesia está finalmente morta.
E, se você quiser aparecer vez ou outra, vê se pára de bater assim a porta...

Porque eu quase morro de susto, porra!


PS: Ilustração de Chiara Bautista.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Scotland


Definitivamente, eu nasci no país errado.
Meu corpo não suporta o calor. Minha mente, tampouco.
Acho inadmissível viver num lugar do planeta onde não se pode vestir descentemente porque isso coloca em risco a minha sobrevivência. Afinal, posso morrer de calor se não usar roupas leves e pequenas.
O fato é que eu não deveria ser brasileira.
O povo daqui é tão sensual, receptivo e sinestésico.
Eu não.
Eu gosto de roupas fechadas em punhos e pescoço, gosto de cumprimentar de longe e odeio que coloquem a mão em mim. Juro que não é afetação – só acho que não há necessidade de colocar a mão na minha perna enquanto me conta sobre a briga com o irmão nem no meu ombro enquanto fala sobre a venda do carro. Confesso que tenho bons amigos que são assim, mas eu levei muito tempo até conseguir gostar deles. E também confesso que minha vida era muito mais tranqüila até o dia que eles descobriram que eu abomino o tal “abraço de urso”... mas isso é outra história.
O fato é que o Brasil é um país de calor atmosférico e humano, e eu não aprecio nada disso.
Sou naturalmente européia. Não francesa, pois também não gosto daquela soberba intelectual dos da França. Não inglesa, pois não me agrada aquela arrogância impertinente dos britânicos. Não italiana porque careço de sensualidade e não sueca porque me faltam educação e bons modos.
Sou naturalmente escocesa.
Sou humilde e simpática de uma forma bem sutil.
Sei sorrir com alguma doçura e considero absurdamente sexy o traje kilt.
Amo o frio e as paisagens bucólicas.
Dia desses comecei a traçar meu itinerário e até encontrei a cidadezinha onde quero viver ao norte da Escócia.
Passarei todas as minhas próximas noites implorando a Deus para que me arrebate deste lugar e me leve para aquele cantinho paradisíaco do mundo, onde poderei construir meu reino de solidão, silêncio, frio e paz.
Até lá, sigo brasileirando amargamente.
Se o calor não der cabo de mim... Um dia escreverei de algum lugarzinho recôndito da Escócia e postarei a foto de um belo exemplar de macho escocês enfiado dentro daquele traje em xadrez afrodisíaco.
Que Deus Pai ouça minhas preces.
Amém.