terça-feira, 29 de maio de 2012

(im)purezas literárias


Sobre esta nossa vida feita de não-clássicos, onde nunca seremos eruditos.
"Pós-modernos-neo-contemporâneos". Fissurados em uma prosa qualquer, sem Joyce nem Shakespeare, a ralé intelec... atualmente ébria - maconheiros do amanhã, incapazes de dizer o que lá. Lá lá lá.
Onde seremos poesia? Quando se respira esta noite? Quanto vinho será necessário para nos tornar menos tímidos ou menos hostis?
Dorme no escândalo da música underground, no embalo do sexo puto, nas palavrinhas deliciosamente obscenas escorrendo pelos lençóis.
Outro drink e outra referência literária - respiremos aliviados: todos conhecem. Não sabemos o que fazer com as duas estrelas e a arbitrariedade invade nosso mundo azul: Nada de literatura por aqui! Fica proibido narrar ou poetizar - já que a rimar ninguém se atreve... Nada de novo. Seremos a poeira do que já criaram e do que já sabemos.
Belos e suavemente mortos neste canto de bar sem luz de velas para nos guiar no além-mundo. Um toque na coxa... é vida. Tesão. Tesão é vida? De certo... E o amor?
Concentre-se! Alguém importante está falando.
 - Importante para quem?
 - Mais importante do que você, certamente.
 - Sorry. Posso escrever agora?
E escrevo outro capítulo na cama, lambuzando os lençóis de palavrinhas obscenas e a sede de três garrafas.
E escrevo sob a pele com toques inventados para uma literatura qualquer.
Eruditos na arte de arrancar do outro um gozo trêmulo. Com mãos, pés, boca e sexo. Nada mais. Apenas os verbos preguiçosos de pouco mais de trinta dias. Saudações, ilustre insegurança!
E escrevo as três da manhã - exausta, (im)pura, puta, insone e impune mais um não-clássico de nossas inspirações grandiosas.
E escrevo a náusea de mais um elogio de idioma inventado - a vontade viciosa de colocar fim a essas pretensões de páginas azuis.
E o amor?
Juro que é amor. Juramos! Juremos. É azul. É bom é pleno e é genuíno.
Não nasceu erudito nem aprendeu os clássicos. Nem qualidade literária tem, pobrezinho! É vagabundo, erótico e egoísta. Não dorme na mesma cama... incomoda. Não conjuga os verbos corretos - geme desafinado. Busca e morde e grita enlouquecendo os vizinhos. Ah! Amor grande e louco.
Mas, acredite, meu bem: só pode ser amor... tanta insanidade literária.


Imagem: Francine Van Hove - La Liseuse 1996

sábado, 3 de março de 2012

... demasiado humano


O cachorro é feio e simpático igual ao dono. Chama-se Zé – o cachorro. Passeia satisfeito entre ébrios de respeito. Abaixa a cabeça me oferecendo o dorso para um carinho quando o cumprimento: “Oi Zé, bonitão!” E ele está feliz da vida pelo banho recém-tomado.

Logo ali, ao lado, está a figura aposentada que passa os dias à espera de alguém que lhe peça uma informação, um favor ou uma lembrança. Ficam em pé, encostados no meu portão, copos e garrafas sobre o muro em uma eterna confraternização improvisada que já se organiza em Associação: a eleição do presidente é barulhenta no sábado à tarde em meio à fumaça do categórico churrasquinho de meio-fio e a balbúrdia dos associados plenos de uma insólita embriaguez democrática.

A mulher de meia idade, cabelos tingidos de um loiro-pastel-desbotado, batom vermelho manchando o dente e esmaltes de três semanas completa o cenário do bom e velho “boteco copo-sujo”. Ela se senta em uma mesa central em companhia anônima, onde pode ver e, principalmente, ser vista por todos. É a rainha da noite que chega com mais alguns, cortejada pelos mais inspirados que lhe declaram amor eterno respeitosamente em pé e sem se apoiar em nada – o que, a esta altura, já é um grande feito. E ela se desfaz em sorrisos de manchas rubras, majestosa em seu batom implacável, e responde com cadência e irreverência sem maltratar o pretendente nem se render aos seus encantos.

Eis que tal atmosfera literária contamina toda a rua: o padeiro com seus cabelos de moleque; o verdureiro de mãos firmes; o japonês da floricultura que observa tudo com espanto e reprovação e cada espírito humano que já esteve enterrado em paragens mais sombrias se regozija com a felicidade vulgar do bairro popular.

Olhares distantes tentam me convencer de que no bar não tem poesia. Que os dentes manchados de decadência são feios e nojentos; que a enorme barriga do dono do Zé é patética e imbecil; que uma Associação dos “Amigos do Bill” é um insulto aos moldes sérios dos canais democráticos de participação popular; que o pequeno Zé está infestado de perigosas pulgas e carrapatos e que o homem aposentado está em um quadro avançado de depressão.

Quem vê de longe não vê tudo... A poesia se esconde desses olhares acostumados ao desfile perfeito de manequins de carne-osso-e-chatice das paragens sintéticas da classe média.

No bar, a poesia inflama as mais sérias discussões políticas, os rumos do país, o abraço irmão, a queda de um ou outro regime, a dor de amor, a morte, as divergências aumentam o volume das vozes e Deus entra na peleja “protegendo-e-guiando-todos-nós-amém”. Filósofos elaboram refinadas críticas à globalização, as redes sociais e ao baixo nível dos chats de bate papo. Um homem conta comovido sua última visita ao urologista e o grupo se compadece – segundos de silêncio. E, de repente, todos os olhares voltam a brilhar num espetáculo coletivo de torpor e encantamento quando a vizinha passa. A alegria reina, todos os copos se enchem e no mundo já não existe urologistas.

A poesia se embriaga, faz um gesto obsceno e tira a decadência pra dançar.

Que belos contos contaria o Zé se pudesse.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Entre morangos e ressaca


E ele fala que não pode. Sabe que não deve, mas me dá as mãos, o coração e todo o resto. E eu não sei o que fazer com um homem assim, inteiro. Agradeço e nego. Choro baixinho para que não saiba que preciso de um abraço. Recuso discretamente o vinho para que não perceba que estou mais triste do que o álcool poderia suportar. E já não sei se sou forte desse jeito ou se essa é a mulher que inventei pra ele. E volto dizendo que está tudo bem e espero e danço e bebo e amanheço olhando o fundo do copo com um sorriso etílico nos olhos cansados de saudades. E ele atravessa a passarela com uma mochila nas costas e me abraça e me amarra e me bebe. Adormeço sem saber onde me perdi – plenamente inconsciente do resto do mundo que nos separa para sempre até de manhã. E sonho sonhos onde o planeta gira na direção contrária, inverte o tempo, confunde as cores, os sabores e ele não vai embora. E me ofereço no café da manhã, entre morangos e ressaca. Ele me ensina um novo dia. Ele me mostra dias velhos. Ele me fotografa e me contrata. E me solta as mãos para que eu durma. E me embala o sono com verbos inventados depois vai embora no meio da noite. Ainda chove. O chão se desfaz sob meus pés e o céu escorre pelo meu corpo. Volto a dormir.


"Nothing is real,

And nothing to get hung about.

Strawberry Fields forever"

(Strawberry Fields Forever – The Beatles)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O dizimista


Escorreu tranqüilo pelo asfalto – altivo e seguro de sua singularidade e importância, do impacto de sua cor e do desconforto que causava. Seguiu desviando insolente das ranhuras e irregularidades da rua íngreme.

O primeiro carro parou. O motorista de meia idade, funcionário público, casado, pai de dois e discretamente calvo, entre encantado e aterrorizado, seguiu com os olhos, mas não teve coragem de seguir com os pneus. Atrás, a fila de carros crescendo na rua estreita, alguns até buzinando impacientes, alheios ao espetáculo que dançava rua abaixo um pouco à frente, se exibindo em curvas cuidadosamente elaboradas para o desenho infame que seduzia os curiosos.

Na porta da loja de eletrodomésticos, a vendedora loira e ligeiramente acima do peso também observava com singular afetação o mórbido passeio que seguia com requinte e precisão, como se soubesse exatamente onde deveria ir.

Uma criança de olhos grandes e cabelos desgrenhados aproveitou o estado de total paralisia da mãe e se soltou para segui-lo, mas foi imediatamente repreendido por estranhos mais hipócritas que bradavam ser tal ato uma extrema falta de respeito, embora a criança soubesse que, na verdade, todos estavam mortificados de medo por não saber onde aquilo iria parar.

Durante os longos e angustiantes minutos em que insistiu em sua descida obstinada, o silêncio interrompeu o pandemônio de indignação e horror produzindo um cenário de encantamento que comoveu todos os presentes. Alguns metros à frente, morreu na curva sem avisar ninguém.

O motorista de meia idade, entre frustrado e aliviado, cruzou seu rastro maculando os pneus e foi imitado pelo cortejo de carros que passava lentamente para que os motoristas fossem transformados em testemunhas oculares do fato que contariam nas proximidades da garrafa de café do escritório.

No alto da rua, o morto parecia olhar o desenho que nascia de um triste buraco em sua cabeça. Lá embaixo, na curva, morreu o último fio de vida do pobre morto que iria depositar – religiosamente – o dinheiro da Igreja, mas teve sua cabeça estourada pela bala do revólver de um motoqueiro qualquer que recolheu os dízimos da semana toda as dez da manhã na porta do banco.

No dia seguinte, o conto corria pelas bocas e jornais da cidade: o dízimo escorreu e desenhou no asfalto.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Doses homeopáticas


Tinha pouco: um estômago estragado pelo café e tantos cigarros, um subconsciente atrevido que produzia sonhos engraçados, um cuidado excessivo com a pouca saúde mental e a certeza reconquistada da realidade – mesmo essa, escorregadia e suspensa. Sóbria. Sem a anestesia do álcool, a promessa dos dias futuros ficava cada vez mais interessante para alguém que já conhecia o medo. Esquecia-se dentro de si, recebendo sopros da solidariedade alheia como resultado do maldito comentário distraído que só serviu para atrair olhares piedosos e convites para o bar. Ficava. Deixava-se ficar. O desespero ao lado – adiava. Lia. Trabalhava. Perambulava. Voltava. O mundo cada vez mais cheio de gente normal. O estômago burro cultivando o mau hábito de não ir embora enquanto reproduz um título universal. Como é que fica depois de? A trilha sonora perfeita. O atraso provocado. O afastamento. A acusação pendurada no cabide, ainda com etiqueta, ao avesso com todos os outros objetos que continuam falando de um mundo fácil e falacioso. Buscando nos cantos o ponto final, o golpe certo, o suspiro aliviado de quem já pode cair e chorar, encontrava apenas intervalos, a respiração presa, a ameaça. Talvez seja melhor assim – doses homeopáticas do fim. O grito preso na ausência. A lágrima abortada no fundo do silêncio que a dúvida deixa em cada esquina. Ainda não chegou a hora, baby. É só uma crise, o amor não é tão cruel. Talvez seja, mas não com quem não merece. Talvez seja, mas... em doses homeopáticas.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Velha roupa colorida*


Uma caixa escondida no fundo da estante guarda sua infância anêmica. O piso já não é o mesmo e o antigo cão peludinho que contraditoriamente armava emboscadas brutais contra panturrilhas desavisadas embaixo das camas foi substituído por um vira-latas preto que ri de todo mundo deitado no canto da porta.

A cidade está cada vez mais empoeirada pelo tempo.

Os sofás onde os pretendentes das irmãs mais velhas afundavam perplexos diante da entrevista cruel do pai também foram substituídos por outros onde alguns namorados distraídos das irmãs mais novas sentam para uma cerveja de domingo e as piadas do pai inofensivo. O novo sofá já não protege o coração das filhas mais novas nem as condena ao casamento dos tradicionais valores da família cristã. Parece até que, por milagre, os tradicionais valores da família cristã foram esquecidos com a velha caixa na estante. Entre malandros e filósofos, hippies e índios, maníacos-depressivos e dependentes químicos, todos encontram no velho pai um companheiro de copo e de pesca. A casa foi ficando vazia de filhas durante a semana e repleta de estranhos aos sábados, com dois netos que passaram sem que ninguém percebesse dos carrinhos de bebês para o chão do quintal dali ou dos vizinhos. Os conflitos morais na cozinha foram substituídos por debates históricos no bar. Todos cresceram. Todos. E alguns já começam a morrer.

De repente, o mundo ficou assustadoramente maior – com aeroportos e empregos no meio do caminho. Ao invés de uma permissão ou bronca, o pai lhes deseja sorte, alheio ao passado silencioso dentro da estante e à imensidão que contaminou o mundo.

Seus dedos um tanto afetados vasculham as fotos antigas com uma discreta obsessão por descobrir quem havia sido. Desde que fora embora para tão longe havia adquirido essa falsa nostalgia romântica de quem optou pelo exílio como zona de conforto das relações pessoais.

E o mundo já não cabe em uma caixa de fotografias antigas.

E, de repente, o mundo ficou encantadoramente maior.


*“E o passado é uma roupa que não nos serve mais”

Belchior

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Querida Nina,


Como você está? Espero que esteja bem...

Ficamos muito contentes de receber sua carta e saber que você está se adaptando bem aí.

Eu estou bem aqui... todo fim de tarde me sento nos degraus de madeira esperando o inverno chegar, embora já tenha entendido que aqui o frio é de mentira. Tento não pensar na distância, mas as vezes me entristeço a ponto de explodir em choro e chatice até incomodar dois estados inteiros.

Nunca mais tingi os cabelos e tenho visto uns fios brancos quando vou secá-los – sempre me lembro de você e penso nos comentários que faria se visse minha velhice chegando.

Abelardo andou extremamente desconcertado por causa da cegueira e tenta disfarçar a todo custo, embora seus olhos estejam cada vez mais leitosos e ele vacile cada vez que tenta descer os degraus da cozinha. O que lhe devolveu o bom humor foi um novo amigo que chamamos de Mateus – um vira-latas marrom que faz xixi na cozinha e passa as tardes com Abelardo descobrindo o quintal, sempre muito paciencioso e tolerante com as manias do amigo cego. Quantos anos tem o Abelardo?

Dona Pompeia está cada vez pior da memória e toda semana me pergunta por você quando está varrendo o quintal. Antes eu sempre dizia a verdade, depois comecei a brincar de contar uma história diferente a cada vez que ela aparecia. Até que um dia disse que você fugiu com um cigano e ela simplesmente virou as costas e saiu arrastando a perna direita enquanto resmungava que sempre soube que isso aconteceria. Contei ao Rui e ele me repreendeu por estar confundindo ainda mais a cabeça da pobre dona Pompeia, por isso parei com a brincadeira – mas agora ela acredita em qualquer história que eu conte, menos na verdade e sempre me pergunta pelos ciganos. Você conhece algum cigano, Nina?

Carla vai se casar com aquele rapaz que trabalha no banco. Os dois aparecem toda quarta-feira com uma garrafa de vinho ou um bolo de cenoura e sentamos na varanda pra conversar e ouvir seus discos.

Rafael está fazendo faculdade e descobrindo as misérias da vida acadêmica, mas sempre aparece também pra brincar com Abelardo e pegar livros do Rui. Disse-me que está apaixonado por uma garota e que não tem a menor ideia do que fazer com isso.

A casa continua sendo de todo mundo do jeito que era quando você estava aqui, embora não tenhamos mais seu violão. A cidade toda acompanha suas publicações e espera sua visita.

Dia desses, estava voltando do cinema sozinha e pensei que seria assaltada, mas o sujeito me recitou um poema de rua. Você tinha razão, Nina: há tanta vida no meio-fio e quase nada naqueles corredores que agora também me acusam de.

Até que estou me virando bem entre tantos técnicos-fantoches-de-pano-e-de-vaidades, mas você sabe que isso cansa pra cacete, pois também já foi uma forasteira.

Continuo apaixonada, acredita? Descobrimos que é muito bom cuidar um do outro e ele ainda me abraça três vezes ao dia como fazia meio sem querer quando nos conhecemos.

Estou quase terminando meu livro e quero que você seja a primeira pessoa a ler. Gostaríamos muito que você viesse passar o Natal conosco e acredito que até lá o livro já estará concluído.

Dizem por aqui que você vai publicar uma crônica sobre seus 80 anos e estamos todos muito ansiosos.

A propósito: feliz aniversário! Espero que goste do presente – foi o Rui que escolheu, pois disse que você gosta da cor verde.


Abraços,

Ana.


PS: as luzes continuam acesas.



Imagem de Andy Kehoe

sábado, 4 de junho de 2011

Em voz alta


Buscava elementos literários para um conto oferecido: um varal torto, um vinho chileno, três dias...

Três dias ou um ano? Um ano não cabe num conto. Quem sabe um tratado sobre 30 anos de atraso – um pedido de desculpas por essa juventude inconveniente: “Sorry, baby. Nasci tarde demais, passei 24 anos por aí e depois te encontrei”.

Um passarinho metido a despertador, um abraço bem apertado, um sofá pequeno demais...

Um clássico da literatura universal em prosa erudita sobre o tempo ou um manual prático sobre o amor em três idiomas – sem maiores pretensões. Personagens arrogantes que se encontraram, se perderam e voltaram a se encontrar. Alguma distância para enfeitar e verbos infames de alguém que custou a aprender a pieguice das declarações de amor.

Um beijo de boa noite, uma cama barulhenta, um carinho de bom dia, muitos degraus, cordas...

Um romance ilustrado por poucos objetivos, alguns planos loucos, desejos confessos, impublicáveis, participações especiais e um tanto de saudades.

Receita de bolo... ou daquele pãozinho doce que é preciso saber fazer antes de querer casar misturada com obscenidades escritas na pele a quatro mãos por corpos atentos e corações distraídos.

Um poema distante: “O mundo é tão antigo, amor...”

Múmias, bares, sotaques e olhares em versos pitorescos. Nestas rimas de palavras cadentes que atrapalham os dias, atravessam as madrugadas, se perdem e voltam a se encontrar no meio do caminho de dois personagens arrogantes.


Imagem de Otto Schade encontrada aqui