sábado, 21 de março de 2009

Heroes


Você sempre me faz chorar.
Principalmente quando passa muito tempo longe.
Sinto-me péssima.
Vem aquela sensação de que você está cada vez mais afastado de mim. É quando sua falta dói...
Tenho aquelas noites degradantes de lágrimas, dezenas de cigarros e músicas melancólicas.
Sempre chego ao trabalho com os olhos inchados e o estômago em frangalhos na manhã seguinte. Dia desses uma amiga perguntou o que me aconteceu e eu disse que fui exposta por muito tempo à música ruim e que sou alérgica.
Às vezes, conto para alguém as coisas que você me diz.
Aí, eu me sinto um pouco melhor.
É por isso que valorizo tanto os amigos: eles fazem tudo parecer mais simples.
Lamentando-me para algumas amigas, contei-lhes sua frase memorável:

“SERÁ QUE PELO MENOS UMA VEZ NA VIDA NAO PODEREI DEIXAR DE
SER O SUPER-HOMEM...
E ESPERAR QUE ALGUEM ME SALVE???”

Foi o suficiente.
Agora tenho vários apelidos por aqui:
Mulher-Maravilha, Tempestade, Electra, She-ra, Xena e até a Sara... aquela do Cavalo de Fogo.
Daí formou-se a cantoria daquela música da abertura com vozes tão desafinadas quanto a da própria mulher que cantava no desenho.
E da Sara pulamos para a Caverna do Dragão, Tom e Jerry, Pica-Pau, Ursinhos Carinhosos, Muppets, Popeye e toda a fauna animada da saudosa infância.
Então, você se perdeu no meio do Mestre dos Magos, do Gonzo, Brutus, Leôncio e mais uma legião de personagens fantásticos...
E as amigas transformaram tudo em algo muito simples:
Nosso amor mal sucedido é apenas uma estória...
E nós dois, apenas personagens iguais a esses de desenhos animados que víamos há muito tempo atrás.

“We can be Heroes
Just for one day”...

terça-feira, 17 de março de 2009

Medo

Descobri que monstros existem sim!
Depois que a delirante infância foge assustada, deixamos de acreditar neles...
Tenho 22 anos, a minha infância já fugiu há algum tempo.
Mas, sei que eles existem e estão por toda parte.
Antes apareciam apenas a noite, na escuridão, em meio ao sono...
Antes eles não tinham cor definida.
Estavam apenas nos pesadelos...
Tinham diversos nomes, eram disformes e petrificados.
Agora são reais.
Vejo-os durante o dia, iluminados pela luz do sol...
De olhos bem abertos...
Usam máscaras e palavras de anjos, são gordos, simples e até simpáticos.
Têm mãos, cabelos e sorrisos...
Carros, casas, nomes, datas e legendas...
Amam, se casam e têm filhos.
Atacam quase sempre os olhos, mas às vezes também atingem o sistema respiratório.
Aprisionam músicos e personagens literários em cavernas frias e escuras.
São muito violentos e odeiam a humanidade.
Um deles atacou meus olhos...
Mostrou-me seu verdadeiro rosto.
Tenho medo de monstros.
Eles estão por toda parte.

Existem monstros de verdade.

Escultura de Jane Alexander.

terça-feira, 10 de março de 2009

Vem...


O garoto está tentando se esconder...
O medo o faz chorar.

“Vem aqui, menino. Eu sei de todas as coisas...
Tenho uma casa, um carro e um emprego.
Uma esposa submissa, uma filha linda e uma mãe zelosa.
Vem aqui que eu te ensino a crescer e ser igual a mim.
Assim, você nunca mais sentirá medo, será respeitado pela sociedade e por seus familiares e visto por todos como um homem bom, forte e virtuoso.
Vem, menino... que eu entendo seu medo.
Também já fui menino...
Também já me escondi.
Mas, veja o homem feliz que me tornei.
Hoje, eu sei de todas as coisas. Conheço toda a história humana, toda ciência e toda teoria.
Sou culto, criativo e eficiente.
Domino todas as artes e as pessoas se calam para me ouvir.
Vem que eu te ensino toda sua vida...
Pare! Homem não deve chorar assim... Alguém pode ver.
Não se preocupe, vou lhe ensinar qual é o melhor lugar para as lágrimas.
Veja o paraíso que lhe apresento: uma vida linda...
Ensaiada, decorada e só depois vivida.
Sem sobressaltos nem paixões dolorosas.
Sem imprevistos nem improvisos.
Vem, menino...
Que aqui o ar nunca falta e nossas máscaras são bem bonitas.
Nosso teatro é comovente e nossos valores são universais.”


O que ninguém sabia
É que era isso
Que o menino mais temia.


Tela de Ray Caesar.

quinta-feira, 5 de março de 2009

(Pre)texto


Eis o meu aparato técnico: uma garrafa de vinho, um maço de cigarros e a lembrança fiel da cena desta tarde.
Absolutamente sozinha e disposta à só abandonar os cigarros e a garrafa depois que tudo estiver definitivamente claro pra mim.
O que aconteceu, como aconteceu e por que aconteceu.
Até parece pretexto pra me embriagar sozinha!
Mas, é uma meta. Um objetivo coerente e de fácil acesso.
É só eu ficar aqui o tempo necessário e pensar bastante. Ver e rever aquela cena quantas vezes for preciso e chegar a uma conclusão.
Vamos lá:
Você bateu a porta com força como sempre, mas dessa vez eu me assustei. Há tempos você não aparecia...
Pensei que meu coração estivesse acelerado por causa da sua presença, mas logo constatei que era por conta do susto.
Fui muito educada e gentil, igualzinho quando aquele técnico da vigilância sanitária aparece para pegar uns relatórios.
Aquele silêncio foi constrangedor, eu sei... Mas, é que eu estava tentando me lembrar de todas as palavras que eu queria tanto te falar, esperei tanto pra gritar, ensaiei tanto pra te dar...
Não consegui me lembrar! Que coisa estranha...
O jeito foi conversar sobre tudo e sobre nada...
O que era aquilo acariciando meus cabelos sarcasticamente?
Era a nossa apatia...
E a poesia, onde estava?
Morta.
Morta?
Não! Não pode ser... Quem a matou?
Você ou eu?
Isso não importa.
Está morta a pobrezinha e a culpa é nossa.
Já era hora dela morrer.
Foi por isso que eu me assustei quando você chegou batendo a porta. Foi por isso que eu nem me lembrei das palavras que passei um mês escolhendo pra você.
Foi por isso que eu quase te entreguei os relatórios e desejei um bom final de semana quando você ia saindo.
E eu não me senti feliz nem triste por vê-lo...
Não senti raiva de você, nem pena, nem carinho...
Meu coração simplesmente se recusou a participar daquela cena.
E eu não senti nada.
É isso! A poesia está morta.
Essa é a conclusão de tudo...
Será que agora eu devo chorar e guardar luto?
Não sinto vontade...
Devo respirar aliviada?
Ligar para todos os meus amigos e dizer que estou curada?
Também não é assim que me sinto...
Não sinto nada.
E alcancei a minha meta.
Mas, este vinho está tão bom...
Acho que convém eu pensar mais um pouco na cena e fumar mais um cigarro...
Quem sabe eu ainda verei você no fundo do copo?

...

(A outra metade da garrafa e uma carteira de cigarros mais tarde):

Não tem mais vinho nem cigarros...
Sabe quem eu vejo no fundo do copo?
Ninguém.
Uma garrafa é muita coisa pra mim. Estou totalmente embriagada, mal consigo ver o copo...
Vou pra cama...
Minha cabeça está pesada e minhas pernas estão moles...
Preciso parar de beber.
Não há ninguém no fundo do copo.
A poesia está finalmente morta.
E, se você quiser aparecer vez ou outra, vê se pára de bater assim a porta...

Porque eu quase morro de susto, porra!


PS: Ilustração de Chiara Bautista.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Scotland


Definitivamente, eu nasci no país errado.
Meu corpo não suporta o calor. Minha mente, tampouco.
Acho inadmissível viver num lugar do planeta onde não se pode vestir descentemente porque isso coloca em risco a minha sobrevivência. Afinal, posso morrer de calor se não usar roupas leves e pequenas.
O fato é que eu não deveria ser brasileira.
O povo daqui é tão sensual, receptivo e sinestésico.
Eu não.
Eu gosto de roupas fechadas em punhos e pescoço, gosto de cumprimentar de longe e odeio que coloquem a mão em mim. Juro que não é afetação – só acho que não há necessidade de colocar a mão na minha perna enquanto me conta sobre a briga com o irmão nem no meu ombro enquanto fala sobre a venda do carro. Confesso que tenho bons amigos que são assim, mas eu levei muito tempo até conseguir gostar deles. E também confesso que minha vida era muito mais tranqüila até o dia que eles descobriram que eu abomino o tal “abraço de urso”... mas isso é outra história.
O fato é que o Brasil é um país de calor atmosférico e humano, e eu não aprecio nada disso.
Sou naturalmente européia. Não francesa, pois também não gosto daquela soberba intelectual dos da França. Não inglesa, pois não me agrada aquela arrogância impertinente dos britânicos. Não italiana porque careço de sensualidade e não sueca porque me faltam educação e bons modos.
Sou naturalmente escocesa.
Sou humilde e simpática de uma forma bem sutil.
Sei sorrir com alguma doçura e considero absurdamente sexy o traje kilt.
Amo o frio e as paisagens bucólicas.
Dia desses comecei a traçar meu itinerário e até encontrei a cidadezinha onde quero viver ao norte da Escócia.
Passarei todas as minhas próximas noites implorando a Deus para que me arrebate deste lugar e me leve para aquele cantinho paradisíaco do mundo, onde poderei construir meu reino de solidão, silêncio, frio e paz.
Até lá, sigo brasileirando amargamente.
Se o calor não der cabo de mim... Um dia escreverei de algum lugarzinho recôndito da Escócia e postarei a foto de um belo exemplar de macho escocês enfiado dentro daquele traje em xadrez afrodisíaco.
Que Deus Pai ouça minhas preces.
Amém.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Ofício nº 260486

Hawik, 19 de fevereiro de 2009.

Ao Senhor Menino da Estrela.

Venho por meio deste, informar a Vossa Senhoria que, a partir desta data, fica oficializado e publicado neste espaço para que haja testemunhas, que cansei dessa merda.
Estou cansada de ser a Julieta, Isolda, Sierva Maria ou qualquer outra pobre infeliz da literatura.
Vossa Senhoria sabe perfeitamente que minha insolência não me permite representar esses papéis de mocinhas sofredoras e ainda tem a pachorra de ficar aí com esse seu arremedo de amor que não leva a lugar nenhum.
Está esperando o que? Que Deus ou o Diabo resolva todos os vossos problemas?
E ainda fala comigo como se fosse a maior vítima dessa maldita história só porque está mortificado de vergonha por ter batido no peito se dizendo um exemplo de coragem e força.
Bem feito para Vossa Senhoria.
Quer que eu sinta pena?
Pena tenho é de mim, que estou chorando e tropeçando nos meus próprios sentimentos de tanta saudade que sinto.
Vossa Senhoria é demasiado contraditório: Primeiro, me dizia com belas palavras que vosso amor fortalecia-o diante das adversidades que deveria enfrentar. Depois, derrotado, defendia um amor diferente, que deve bastar-se e “contemplar a si mesmo”.
Vossa Senhoria faz do amor o que lhe convém?
Pensa que o fato de me amar justifica ter-me deixado no limbo da dúvida por tanto tempo, sem que pudesse saber o que havia acontecido?
Pensa que vosso amor lhe isenta da culpa de ter-me feito implorar para que me contasse o maravilhoso final que destes a este “conto” miserável?
Sinceramente, senhor Menino da Estrela. Estou farta.
Espero que Vossa Senhoria tome providências imediatas (voltar pra mim o mais rápido possível sugere providência extremamente satisfatória), pois caso contrário, jurarei solenemente que as únicas palavras que voltará a ouvir de mim serão acusações tão agressivas quanto estas que acabo de fazer.
Jurarei nunca mais representar esse papel medíocre de donzela que cultiva e sustenta o amor de seu príncipe acima de qualquer provação. Afinal, nos belos contos o príncipe também faz sua parte.
Cansei-me dessa merda, senhor Menino da Estrela.
E, se Vossa Senhoria ainda não entendeu, finalizo enfatizando que isso é uma ameaça pública e formal. Para que, depois, Vossa Senhoria não possa dizer que não estava ciente de minhas resoluções.
Certa de contar com a vossa colaboração.
Sem mais no momento, desde já agradeço a atenção dispensada.

Cordialmente,

A Doninha de Ninguém.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

E também pode ser assim:


Ele joga o cinzeiro contra a parede e diz que há tempos queria quebrá-lo e nunca mais sentir o maldito cheiro de fumaça dentro daquela casa.
Ela arremessa o relógio que ele ganhou de presente do irmão mais velho e grita todos os palavrões que deixam os vizinhos escandalizados.
Estão quase cometendo um assassinato.
Ele a acusa de negligência.
Ela o acusa de apatia.
Ele apenas acusa.
Ela xinga. Aos gritos.
É um deus nos acuda.
Ela diz que está levando apenas seus livros e CDs e que o que ficar pra trás ele pode enfiar num lugar que estarrece os vizinhos.
Ele odeia aqueles palavrões. Odeia.
Ela sabe disso.
Ele levanta o braço para dar-lhe uma tapa e ela oferece o rosto como se fosse para um carinho.
Os lábios dele se contraem de raiva e o estômago dela dói de amor.
É uma luta inglória.
Ele se afasta e ela o manda para o inferno.
Lá vem um novo festival de palavrões.
Ele a manda calar.
Ela obedece e acende um cigarro.
Ele apenas observa e recomeça o circo assim que ela joga as cinzas no chão.
Quem mandou você quebrar o meu cinzeiro?
Como ele pôde viver tanto tempo com alguém tão detestável?
Ele é sensato.
Ela é histérica.
Ele não vê a hora que ela vá embora para que os vizinhos possam dormir.
Ela prolonga exaustivamente aquela aflição.
Fodam-se os vizinhos. Já os viram e ouviram em situações muitos mais ultrajantes para os olhos de quem não está participando.
Ele não a ama, por isso os gritos não fazem sentido.
Ela o ama profundamente, por isso não faz sentido ir embora sem antes gritar e quebrar todos os objetos que ele preza e berrar todos os palavrões que ele odeia.
Ele quer ficar sozinho.
Ela quer que seja assim: um deus nos acuda.
Principalmente para os vizinhos.

A tela é do Munch.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Is This Love


O pequeno relógio observa tudo atentamente em cima da cômoda do quarto. Seus ponteiros cruéis acusando-os da vida que perderam. É um inquisidor, mas abrandou suas palavras diante do fim que constrange até o mais insensível dos objetos que, após testemunhar todos os erros e acertos e brigas e reconciliações, instituiu-se juiz de um tribunal sem contas.
Enquanto o casal tenta estupidamente eleger um culpado pela desventura, o relógio se distrai olhando entediado a disposição dos CDs meticulosamente separados. Do lado esquerdo os dela – ótimos. Ela tem um excelente gosto musical. Do lado direito os dele – patéticos.
Como ela suportou aquelas canções medíocres por tanto tempo?
Pois é... Is this Love.
O amor suporta até o pior dos gostos musicais.
O silêncio do samba que não está tocando incomoda o casal e o relógio grita para que acabem logo com aquela cena deprimente. Sabem que é hora de romper.
O que ela ainda está fazendo ali?
Terminando seu cigarro.
O relógio pensa que, se for pra culpar alguém, que seja ela.
Por que a moça havia de querer ser feliz? Não precisava. Numa relação daquelas a felicidade era algo absolutamente dispensável.
Malditos sambas bons... cúmplices dela neste crime de alegria.
Ela está maquiada. Ele sabe que ela não vai para casa. Vai sair. Com quem? Amigas que vão consolá-la num bom bar.
Malditas amigas. Vão convencê-la de que foi melhor assim, de que a relação já estava sendo destrutiva há tempos e vão pôr a culpa nele.
O relógio pede para ir com ela, para que possa defendê-lo das acusações injustas das amigas.
Ele não vai se consolar com ninguém. Vai ficar ali. Talvez ouvindo alguma música ruim...
Talvez chore.
O relógio poderia muito bem defendê-lo no bar, mas é incapaz de consolá-lo. Daí já é demais!
Não é possível! Será que ela acendeu outro cigarro ou ainda é o mesmo que conspira contra a libertação e insiste em não acabar nunca?
O relógio a repreende. Como ela pode fumar num momento assim?
Como pode se dar ao luxo do prazer no instante em que deve unicamente sofrer?
A culpa é dela mesmo. Egoísta.
Por isso está chorando. De remorso.
Ele não chora.
Sabe que continuará sendo a mesma pessoa que vive e sonha e dorme e acorda e trabalha e morre todos os dias. Só que agora não terá mais uma testemunha ocular que lhe sorri à tarde quando chega do trabalho e que bebe cerveja com o maior prazer do mundo e que canta alto um samba do Zé Keti pelos corredores da casa enquanto procura os óculos batucando nas portas.
Nunca mais o Noel há de cantar dentro dessa casa.
Agora pelo menos vai poder dormir melhor.
Nunca dormiu bem ao lado dela.
Agora pelo menos aquele cheiro de cigarro vai desaparecer.
Vai jogar fora o cinzeiro de vidro.
Nunca mais haverá fumaça dentro dessa casa.
Ela coloca a bolsa no ombro e o abraça chorando.
O relógio desvia o olhar, mas todos os outros objetos choram com ela.
Os únicos que permanecem inexpressivos (ele e o relógio) são os que mais a amam e têm certeza de que a culpa foi dessa necessidade incontida dela de ser feliz.
Poderiam morrer juntos se ela não tivesse esses desejos pueris.
Poderiam ter tido um filho e ele até permitiria que o menino tivesse o nome do pianista que ela gosta.
Poderiam ter composto uma música juntos.
Poderiam ter escrito um romance.
Poderiam tantas coisas – por que ela não esquecia aquela bobagem?
Ele não ouve os passos dela na escada. Talvez ela ainda esteja parada do lado de fora.
Não.
Se estivesse ele a ouviria chorar. Porque ele sabe que ela está chorando desesperadamente agora, enxugando as lágrimas com as costas da mão esquerda enquanto a direita busca a carteira de cigarros dentro da bolsa.
Deixe que chore.
A culpa foi dela mesmo.