terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Flores de Luz


Naqueles dias em que já começava a se despedir da cidade, em uma manhã de chuva fina e sol, sentada em um ponto de ônibus na Guararapes com duas sacolas de mercado nos braços, observava a pichação com letras grandes no muro do outro lado da rua: “O amor é importante, porra”.

Enfeitava a luminária com flores de silicone sentada no chão do quarto e ouvia música baixinho. Nem dois anos aqui e foram tantas descobertas... Pensava na situação do autor da frase da Guararapes e no seu grito injuriado, talvez bêbado numa madrugada, talvez cansado de pensar no significado das coisas.

Apagava a luz do quarto e ficava admirando as flores iluminadas. Nem dois anos e até os muros da cidade já diziam que ir embora dói, mesmo com as promessas de felicidade em outros lugares, mesmo que a gente sempre soubesse que essa equipe multiprofissional iria se desfazer mais cedo ou mais tarde... Mesmo que a palavra “caso” já dissesse que haveria um começo inesquecível no sofá da sala, um meio surpreendente na tua cama e um fim precoce com quilômetros demais entre duas pessoas que não queriam viver um grande amor.

A luminária estava toda florida no fim da tarde... Encostada no guarda-roupas, pensava em começar a encaixotar algumas coisas, deixar a maior parte dos livros na casa dos pais por ora, levar só as roupas, sapatos e a luminária, como se fosse voltar logo e fosse precisar de poucas lembranças além do essencial e das flores de luz.

Pensava no que picharia em um muro da Guararapes nesta noite... O que diria pra cidade da qual se despedia?

Voltava a escrever e pensar nos aspectos práticos – era isso que ele faria. Perguntaria coisas aparentemente simples sobre a mudança e evitaria as palavras que indicassem que as pessoas sentem falta umas das outras sentado na cozinha, com os óculos sobre a mesa e o olhar parado em algum lugar desses últimos meses.

No entanto, ela estava sozinha no quarto olhando a luminária. Queria ser igual a ele – tão racional... Queria pensar no futuro profissional, nos “aspectos práticos”, nas intermitências da vida e na mentira que inventaram para acreditar que este episódio ainda não merece que este texto receba o mesmo título do livro que a levou até ele.

Queria inventar um título, um best-seller, um romance conveniente ou qualquer porcaria capaz de levá-lo até ela dessa vez – só pra variar um pouco. Porque, encostada na porta do guarda-roupas, fumando um cigarro e olhando as flores de luz, ela sabia que tudo ficaria bem e que coisas boas iriam acontecer com ela e com toda a equipe, onde quer que fossem morar... Mesmo que, lá fora, a cidade toda gritasse com seus muros e jardins, que ir embora dói.

Ela sabia que o futuro se anunciava bom, que a mudança traria tantos novos conhecimentos e que em breve iria se acostumar com o novo trabalho, iria fazer mais amigos, se comover com os gritos de outros muros, se apaixonar por outras cidades e talvez ele a visitasse algumas vezes no início... E ela também sabia que nunca mais haveria uma equipe multiprofissional igual a essa e que provavelmente não haveria um muro das lamentações no seu próximo ambiente de trabalho, nem uma pessoa tão desaforenta quanto a Farmacêutica no quarto ao lado onde quer que fosse morar. Será que um dia encontraria outro Fisioterapeuta que beijaria o próprio ombro ao se despedir só pra fazê-la chorar de rir? Será que lá haveria uma Educadora Física cantora de funk? Uma Enfermeira descontrolada? Alguém disposto a sentar com ela no meio-fio, embaixo de chuva pra tomar cerveja no saquinho? Faltou tempo pra tanta loucura... Faltou pouco tempo pra um último porre com a Regiane na Keiko.

E, por causa de tudo isso, ela pichou um lamento na Guararapes, gritando sua despedida com uma ou duas lágrimas no copo de caipirinha em homenagem a Psicóloga que ninguém sabe por onde respira...

Em homenagem a equipe multiprofissional, a esses quase dois anos de resistência e ao autor anônimo do grito injuriado em um muro da Guararapes.

5 comentários:

Dani Santos disse...

E tudo o que se fale vai soar triste, pesado, dolorido a vai ficar doendo e sangrando por um tempo. e a gente sabe que passa. sempre passa. mas não tem jeito, a gente vai falar coisas tristes e chorar e chorar...

Pra vc... pode me matar depois, rsr...

http://poemices.blogspot.com/2011/02/sem-ana-blues.html

Francisco Casa Nova disse...

sigo e sou leitor fiel do "...retratos, cores e siêncio" por isso vim parar aqui, e...cara que bom que vim parar aqui. Não sei qual a profundidade verídica desse post, mas, consegui me afogar nessas palavras, que na minha opinião são tão cheias de verossimilhança, que de cara também fiquei sentindo um aperto no peito, com saudades de guararapes e com vontade de pichar," Ana não vá fique mais um pouco, vamos respirar mais um pouco"

Parabéns, ganhou mais um leitor neste blog, abs.

Anônimo disse...

cheguei aqui através do 'cores, retratos e silêncio'...nossa, estou comovida com as linhas, me passam um verdadeiro sentir de quem as escreveu...como é lindo sentir a vida e seguir vivendo...


"Mesmo que a palavra “caso” já dissesse que haveria um começo inesquecível no sofá da sala, um meio surpreendente na tua cama e um fim precoce com quilômetros demais entre duas pessoas que não queriam viver um grande amor."


"e evitaria as palavras que indicassem que as pessoas sentem falta umas das outras sentado na cozinha, com os óculos sobre a mesa e o olhar parado em algum lugar desses últimos meses."

"gritando sua despedida com uma ou duas lágrimas no copo de caipirinha em homenagem a Psicóloga que ninguém sabe por onde respira..."


escrevo o mesmo que escrevi no blog que aqui me trouxe:

NADA É ETERNO, ALÉM DAS COISAS IRREVERSÍVEIS...O QUE A GENTE CATIVA E COM O QUE SOMOS CATIVADOS SÃO COISAS IRREVERSÍVEIS TBM...

boa sorte na nova empreitada.

ah, vou seguir o blog.

Bendrix disse...

Foi você que começou, mas, não é obrigada a terminar...

Dani Santos disse...

hum. saudades das palavras daqui, essas que afundam no nosso peito e fazem a nossa respiração suspender por instantes... saudade docê, flore, sempre.