segunda-feira, 2 de maio de 2011

Intervenção


O Pai lê Kerouac e espalha sua fumaça ilícita pela casa enquanto a Filha-Jovem-e-Bonita vê o Domingão do Faustão e a Esposa Dedicada lava a louça do almoço excitada lembrando das mãos firmes do pastor segurando sua cintura na noite anterior após o culto. Percebemos apáticos que a cultura beat, a luxúria reprimida e a anticultura global continuam temperando a Sagrada Instituição – mas Machado e Cortazar já não podem fazer disso um bom conto.

O Filho Menor – pobre criança confusa – sentadinho na porta da cozinha, observa a expressão feliz da Mãe e se pergunta quem é louco: o Professor Afetado com sua campanha antidrogas ou o Pai preguiçoso, com sua fumaça fedida e suas ideias de um mundo que ninguém em casa nunca viu? A Mãe parece não se incomodar com a fumaça... A Irmã-Jovem-e-Bonita sim, embora ninguém saiba que seu incômodo é mais pela felicidade inconfessa da Mãe do que pela contracultura do Pai.

Parece insólito, mas a única parte surreal dessa história é que o apresentador global está convidando toda a população para a “Corrida da Paz” no Complexo do Alemão - “refazendo o percurso de fuga dos traficantes...”

O Pai levanta os olhos e ri irônico, sendo o único ser humano da casa a notar a “complexidade” do evento. A Filha se irrita um pouco mais e a pobre criança confusa desiste de observar a Sagrada Instituição onde teve a desdita de nascer e vai brincar com o filho do vizinho, que enfrenta situação parecida, mas ninguém fala no assunto.

A Filha pinta as unhas de vermelho-sangue, com a perna direita dobrada sobre o sofá, de roupa curta e coxas a mostra sonhando a sensualidade da Mãe. Ainda é incapaz de saber que está muito longe de atrair as mãos famintas de pastores e o interesse vagabundo de sobreviventes decadentes da geração beatnik com suas unhas de puta amadora.

O Pai finge que não vê, mas entre uma frase e outra de sua preciosa literatura, observa orgulhoso a excitação da Esposa Dedicada pela porta da cozinha e pensa que é o resultado da trepada medíocre da madrugada.

Ao cair da noite, o Pai sonha de olhos abertos com uma alucinante corrida de mãos dadas com traficantes, policiais e a Janis Joplin no Complexo do Alemão. A Esposa Dedicada arruma os cabelos para o culto e veste um vestido discreto para as mãos firmes do pastor. A Filha-Jovem-e-Bonita já está nua e frustrada no quarto de um aspirante a homem que amarga mais uma ejaculação precoce, mas que tem lá suas qualidades (Freud? Nelson Rodrigues?): ostenta com virilidade intelectual uns livros amarelados de Ginsberg, Burroughs e (claro!) Kerouac que herdou de um tio desaparecido e produz a mesma fumaça ilícita cuidando para que a mãe não desconfie de nada.

O Filho Menor – pobre criança confusa – brinca na esquina com o filho do vizinho, alheio aos rumos da Sagrada Instituição onde teve a desdita de nascer.

E alguém fala no assunto na segunda-feira, em uma sala abafada de uma repartição pública com duas aspirantes a profissionais que abafam um sorriso cúmplice e lamentam não ter a inspiração nem o vocabulário de Machado ou Cortazar, para transformar em um bom conto, mais este típico domingo familiar.


Desconheço a origem da imagem.



4 comentários:

Bendrix disse...

Gostei da "complexidade" do evento que a sua sensibilidade nos ensina, como sempre....

Delirium disse...

Estória legal, real, banal... coisas da vida que as pessoas escondem. Segredos que não contam pra gente enquanto a gente cresce...

Ana. disse...

estonteante realidade!

John Lester disse...

Lindo o seu blog.