quinta-feira, 22 de julho de 2010

De encomenda


Acordou confusa depois de sonhar com um tempo em que já não fariam falta nem sentido. O Anjo Descabelado alisava as asas e cantava um samba choroso empoleirado no encosto da poltrona na frente da janela, de costas para a Bruxa Roberta, numa imagem tão celestial que parecia ser ele quem iluminava a manhã e não o inverso.

A Bruxa ficou prontamente irritada e quis começar uma briga. Mania besta de empoleirar em tudo que é canto... Mas, como brigar com uma criatura com asas?

Eis um romance conflituoso... Começaram bem – sem expectativas, depois deram um fim aos pudores e acabaram matando a poesia. Nada mau para um Anjo e uma Bruxa.

Ele, portador daquela paz de espírito sobre-humana – nunca raivoso – no máximo triste e melancólico com seus sambas de lamento, alisando as penas grandes das pontas das asas para toda a eternidade de anjo que é todo bondade.

Ela, briguenta, mau humorada, xiita incorrigível e sempre a flor da pele. Passional. Uma verdadeira bruxa com seus feitiços tresloucados e a militância pra tudo que é causa que confira alguma dignidade ao universo obscuro de sua espécie.

Mais obscuro é o futuro do casal nesta história mal contada com pretensões de conto de fadas (des)encantadas.

“Mais um desses feitiços e eu desisto”, pensou o Anjo enquanto acendia um cigarro e fingia não saber que ela já estava acordada e pronta pra brigar.

“Ou ele reage ou eu o mando à merda dessa vez”, prometeu em pensamento a Bruxa ainda meio sonolenta e pessimista.

Mas, nesta manhã iluminada e idílica, o Anjo deixou de lado sua natureza divina e voltou o rosto crispado para a Bruxa, que sentou entre os lençóis e correspondeu a altura.

Brigaram até a exaustão. Os vizinhos ouviram e nunca mais voltaram a acreditar que aquele sujeito que gritava, esbravejava e esmurrava a porta poderia ser mesmo uma criatura celestial, dotada de inocência e virtude. A Bruxa Roberta quebrou o relógio, o cinzeiro, as taças e a garrafa de vinho que ainda guardava um pouco da bebida e formou uma bonita mancha rubra na parede lateral do quarto. Porém, o único objeto arremessado que atingiu o Anjo foi uma das taças (sem causar grandes ferimentos) e suas penas se eriçaram feito as de um animal ameaçado e a marca vermelha que a Bruxa carrega desde seu nascimento entre as sobrancelhas ficou ressaltada em sua pele pálida de Bruxa histérica.

Foi um pandemônio. A explosão de todos os sentimentos humanos em dois seres apartados por aquilo que são.

As Fadinhas Sem-Graça se reuniram boquiabertas na calçada e tentaram intervir. Uma delas foi atirada pra fora por um olhar da Bruxa que poderia derrubar até um Gigante. Aliás, este também tentou, mas foi expulso pelo Anjo Descabelado que batia as asas e xingava ao seu redor, gritando até atordoá-lo com seus impropérios de Anjo louco.

Toda a cidade aguardava apreensiva pelo fim daquela balbúrdia. Previam a morte do Anjo (um ser tão frágil e delicado) ou da Bruxa (menos provável considerando a maldade que lhe é inerente). O certo, para todos, era a morte do amor. O fim do romance que a cidade nunca abençoou e as bocas medíocres já alardeavam com singular afetação: “Só podia dar nisso”.

O que ninguém sabia era que aquele deus-nos-acuda resultaria numa fundamental reconciliação daqueles seres inconciliáveis por natureza. E a mancha de vinho na parede lateral do quarto marcaria para sempre a manhã idílica em que a Bruxa Roberta e o Anjo Descabelado se encontraram no meio do caminho daquilo que são.


Dedicado à Roberta. E o título ela há de entender.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Substituição


Trata-se de um dos mais bonitos bares da cidade – o que não significa que seja um dos melhores. A decoração é interessante, bem como o cardápio, a música e a iluminação.

Chegam de mãos dadas. Ela é esguia e um pouco desajeitada. Talvez fosse bonita se cuidasse dos cabelos e da pele... Carece de elegância e não sabe combinar cores.

Dele não me lembro muito bem. Apenas que é mais baixo, mais moreno e mais velho do que ela.

Como eu dizia, chegam de mãos dadas em um dos bares mais bonitos da cidade e ele se sente em casa. Ela, num circo. É apresentada ao dono do estabelecimento e a um outro senhor que bebe qualquer coisa ali no balcão. Cumprimenta-os e abaixa a cabeça, mortificada, sem saber por que.

Estou tentando me lembrar o que acontece depois por causa do conto...

Vejamos: pedem cervejas de marcas diferentes. Ficam de mãos dadas sobre a mesa e sob alguns olhares do casal da mesa ao lado. É aceitável que estejam ali, mas o bar a reprova mesmo sem ouvir o que ela diz. Sabemos apenas que não deveria falar sobre estes assuntos e, talvez por isso, o garçom se detém junto a mesa e desata a falar de futebol.

Voltemos à superfície...

Pedem mais cerveja. Ela já está um pouco zonza de tanto beber, rir e falar num outro bar (um dos piores da cidade) com cerveja em copos de plástico e na companhia de uma loira adorável.

Ele vai ao banheiro e ela observa os quadros na parede da frente. Parece que se sente abandonada ali, longe das mãos dele. Mas, minha mesa não está num lugar privilegiado, a iluminação não colabora comigo e eu também já bebi demais, portanto não ouso afirmar nada com relação a esta ideia de abandono.

A comida demora. O dono do bar não é nada simpático com os clientes. Ele está de volta. Mãos dadas... A ideia de abandono desaparece.

Carregamos as pessoas conosco por muito tempo. “Suas mãos batucando no painel do carro”, ela diz. É isso que pretende levar consigo. Só isso mesmo...

Comem, ele paga a conta sozinho e o bar a repreende por isso também.

Vão embora e nenhum conto aparece no bar. Fico parada com a caneta suspensa no ar, o papel em branco.

Saem. De mãos dadas? Esqueci de observar.

Mas sei que tem um conto com eles.

No sofá da sala, tiram os sapatos e falam sobre os pés dela.

No escritório, ele mostra fotos de uma mulher paraguaia no computador e ela comenta qualquer coisa sobre os seios da moça.

O conto aparece no quarto ao lado um segundo depois.

Mais tarde, conversam abraçados e ela gosta de sentir os lábios dele roçando sua pele.

É um conto feliz. Porra! É um conto feliz que eu nunca vou conseguir escrever.

“Sua respiração na minha pele”, ela diz sorrindo. “Pretendo levar isso também”.


Imagem de Nicoletta Tomas

domingo, 20 de junho de 2010

Nota de falecimento


Ao invés de um texto, publico hoje a nota de seu falecimento. Foi morto na manhã do dia 18 de junho, pois seu bater de asas causava incômodo e repulsa. Teve vida curta e anônima. Nasceu de uma noite insólita de espanto, sorrisos, cerveja e um bom filme. Morreu pelo novo. Morreu de distância, de solidão e de lembranças que passeiam perto da porta logo cedo.

Ao ser questionado, o assassino alegou que o texto era feio. Compreendo...

Porém, deixo meu lamento pela morte prematura deste que, sem pretensões nem a beleza das borboletas, voava desajeitado e repulsivo naquela manhã fria enquanto a vida doía dentro e fora de mim.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Idéias suicidas


Ela: Quero te ver amanhã.
Ele: Pra quê?
Ela: Por que a pergunta?
Ele: Preciso saber o que será dessa vez.
Ela: Dessa vez é de verdade.
Ele: Então diz.
Ela: Posso te dizer amanhã.
Ele: Preciso ter certeza hoje.
Ela: Quero continuar o que começamos há três anos.
Ele: Você tem certeza?
Ela: Tenho
Ele: Por que demorou tanto?
Ela: Você sabe...
Ele: O que aconteceu contigo?
Ela: Fiz tudo errado. Mas isso não é nenhuma novidade.
Ele: O que você quer?
Ela: Me esconder.
Ele: Quer se esconder na minha cama?
Ela: Sim, senhor.
Ele: Acabei de fazer um café.
Ela:
Ele: Vem hoje...
Ela:
Ele: Vem hoje.

E não havia lugar melhor pra ela se esconder do resto do mundo naquela tarde fria de sexta-feira.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

“Conversa de Botas Batidas”


E já que dói mesmo o jeito é lamber as feridas com uma trilha sonora de qualidade, todas as marcas de cerveja que o bar servir e sempre, sempre em boa companhia. Parece loucura, mas quando a coisa toda já está um caos a gente sai pra ouvir Los Hermanos. Não me parecia uma boa idéia ouvir centenas de pessoas cantando: “É o mundo que anda hostil”...

Porque anda sim! As Organizações Sociais estão invadindo o mundo e as políticas públicas se entregam passivas à privatização.

Mas, um convite bem feito não pode passar em branco. Fingimos que ninguém tem TCC (ai cacete, falei!) pra fazer, que a militância pela saúde não está cada vez mais desesperadora, que a PA da galera está sempre em 120x80, que o coração bate na cadência da vida perfeita e vamos felizes da vida descobrir que “alguma coisa a gente tem que amar, mas o que? eu não sei mais”...

E também não era qualquer um cantando. Era um mesmo tal João que já cantou Chico e me encantou com aquele jeito todo bom de embalar as dores e os amores de muita gente sofredora aqui na Pequena Londres. Entre “doces deletérios” e “escravos sãos e salvos de sofrer” constatamos que este tal João é mesmo estranhamente bonito, extremamente simpático e profundamente talentoso. Tanto que fiquei naquele bar pequeno, abarrotado de gente e sem espaço pra fumantes “até o fim raiar”.

Depois? Ir pro trabalho atrasada no sábado porque uma nuvem dessas gordas e pesadas que correm baixas com o vento despencou bem na Avenida Brasília logo cedo e o trânsito virou um caos. Ninguém enxergava um palmo na frente do nariz em meio aquela confusão branca.

E agora a vida segue neste mundo onde as nuvens despencam lá do céu e “Deus parece as vezes se esquecer”...

Porque logo a nuvem se dissipa, um tal João embala mais um dia de feridas antigas, amores desbotados e ofensiva neoliberal enquanto “especialistas analisam e sentenciam: oh, não!”



Banda Matitaperê – boa música sempre!

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Pra quem bate e quem apanha


Sabemos que recentemente levei uma forte bofetada, dessas que fazem a gente perder o equilíbrio e cair com a visão turva, as pernas trêmulas e a face em brasa. Sabemos também que a mão que bateu ainda passeia por aqui.
Também é de conhecimento de todos que isso acontece todos os dias com várias pessoas em diversos lugares do mundo. Existem milhões de faces esbofeteadas e mãos cruéis por aí e lei nenhuma que possa restringir por onde essas mãos e faces podem passear. Logo, este blog continua sendo espaço de livre acesso para todos os corações que batem e/ou apanham.
Porém, gostaria de expressar que fico injuriada com o comportamento de uma mãozinha desaforenta que, depois de bater com força na cara da dona deste blog, ainda aparece por aqui e por outros cantos onde costumo sambar, pra dizer palavras que queimam mais do que a própria bofetada.
Vamos deixar claro uma coisa: quem apanha, chora, porque a coisa em si já dói pra cacete e ainda tem alguns agravantes como quando a mão que bateu é aquela da qual você só esperava afagos. Por outro lado...
E quem bate? Faz o quê? A mão que bate deve ser feliz sem se preocupar com as dimensões da marca que deixou.
Pode até chorar também, só que sem fazer alarde. A mão que bate tem que se comportar como tal em sinal básico de respeito pela face que levou e continua ardendo. Sabemos há tempos que esta mesma mão já foi, provavelmente, uma face ferida em algum outro episódio da vida... mas, agora, neste contexto, nesta situação específica ela é-a-mão-que-bateu-e-estraçalhou-com-o-rostinho-de-alguém! Não tem jeito de assumir outro papel. Não dá pra inverter e fingir que apanhou e que sofre e que sente dor.
Pra ser mais clara, mãozinha:
EU sofro!
EU me lamento!
EU acordo todos os dias e vejo no espelho a marca da humilhação, porque EU me sinto humilhada e ridícula e, ainda assim, tenho que acordar e pentear os cabelos e sair de casa e ser assistente social 8 horas por dia enquanto sinto a face queimar e sei que muita gente aí também vê a marca e comenta baixinho: “Coitadinha dela...” “Pobrezinha, como dói apanhar assim...”
EU passeio por aqui pra chorar de dor, pra tentar recuperar a firmeza das pernas e do espírito, pra sangrar a ferida que lateja nas noites de sono ruim...
Sou EU e não você, mãozinha!
Portanto, penso que cada qual deve se comportar conforme o estrago que fez ou sofreu. Sei muito bem que também já fui uma mãozinha maldita na cara de alguém e não nego os tapas que dei.
Apenas quero, nesta situação, desfrutar do direito legítimo e inalienável que essas marcas que carrego me conferiram, de sofrer e me lamuriar e dar de vítima até cansar, no papel de pobre-coitada-idiota que me cabe, sem que mão nenhuma venha me roubar a cena.
Em suma, que todas as mãozinhas e faces e corações e espíritos livres se sintam a vontade por aqui.
Batendo ou apanhando, todos serão sempre bem vindos. Só que vocês, mãozinhas, não me venham com vitimismos sem pé nem cabeça lamentando o que dói pra quem bateu...
Porque só quem apanhou é que sabe a raiva que isso dá.

terça-feira, 30 de março de 2010

Aquarela


Daí ele disse que logo passa. Só isso.
Vivemos à nossa maneira, coroados de insanidades, fantasiados de bons profissionais, vestidos de cansaço, (in)vestidos de projetos, curados de toda doença emocional que nos dilacerava até bem pouco tempo atrás.
Daí ele disse que tem um jeito novo e bom de se (re)inventar quando você descobre que não cabe no útil nem no agradável.
Pode odiar à vontade, só não vale mais chorar. Pode descobrir que a única coisa confusa por aqui é a cor dos olhos. Tem dias que são verdes, mas se eu ficar olhando por mais alguns segundos eles ficam azuis e eu desisto e te abraço. E, dessa vez, minha loucura atira uma pedra no canto mais colorido de um mundo que não entende muito bem o verde e o vermelho. E todas as cores se misturam nesses dias de Participação Popular, de Terra Celta no Valentino, de fuxico e promoção de saúde, do macarrão delicioso que você faz no domingo.
Estivemos à beira do abismo ainda ontem e hoje somos as pessoas mais normais que nossos amigos conhecem. Nem bebemos mais, vemos filmes na noite de sábado e vamos comprar cigarros de mãos dadas. Uma peça de teatro no final de semana, um velho amigo por boa companhia, livros novos comprados compulsivamente por influência da Ogra que “a gente mais amamos”, pré-banca é um deus-nos-acuda e os dias vão te empurrando lentamente pra um estado de espírito bem parecido com a cadência do samba.
Daí ele disse que eu seria muito mais feliz do que poderia imaginar depois que me descobrisse livre, inútil e desagradável. Maldita e filha da puta. Carente de qualquer doçura e cética até a medula para aqueles cuja única verdade está no discurso de palavras rebuscadas.
E para aqueles que buscaram a verdade em cada canto insólito deste mundo onde as cores atordoam de tão reais e vivas e boas... Para aqueles que aceitaram sua loucura e voltaram para a vida com a humildade e a força de verdadeiros seres humanos... Para estes, ele disse que eu posso ser toda a loucura e me (re)vestir daquilo que sou.
Uma verdadeira filha da puta... e dona de todas as cores do mundo.

quarta-feira, 17 de março de 2010

"Essa pequena epifania"


Suco de laranja, AllStar e dois livros sobre a mesa do Valentino...
De presente, pouco antes de ir embora, a Verdade. Boa e simples como há tempos não se via por aqui.
A mensagem deliciosa 00:05h.
Tua voz suave conversando com a Chica enquanto tento esconder meu constrangimento diante da bagunça do meu quarto.
Voltar pra casa caminhando.
Sem álcool e sem expectativas.
Sobrevivemos.
Já é outono! O vento é bom pela manhã.