sábado, 13 de dezembro de 2008

DIAGNÓSTICO


Sua mãe afaga seus cabelos enquanto ela sonha um sonho ruim com uvas sem cor ao som de Carmina Burana. Estranha música para a menina ouvir num sonho...
Em pouco tempo o médico chega... Diz que a menina acordou e recebeu a notícia, chorou lágrimas da mais profunda consternação e depois voltou a dormir.
A realidade está muito escorregadia. Ela deve ser cuidadosa, evitar músicas, poemas, fotos... lembranças. Ou pode cair.
Apesar do diagnóstico devastador, sente-se segura pela presença do médico. Ele a curou da escuridão que a impedia de respirar.
E é Natal, os presentes já se anunciam! Pretende se afastar desse universo traiçoeiro por alguns dias... Talvez consiga esquecer...
Às vezes sinto muita pena dela...
A menina está tão confusa... Se ela ao menos não se cansasse tanto para tentar entender... Gostaria de poder lhe dizer que não há explicação plausível para o diabetes.
Mas a menina já não tem a companhia do Grande Gato Amarelo de palavras sábias... e seu médico desistiu de negar-lhe a doença.
Voltou a ter pesadelos e o que mais a atormenta é saber que sua doença não tem cura...
Não nos esqueçamos: é Natal... e o presente anunciado deverá ser um bom paliativo.
Alegrar-se-á com ele.
Afinal, diabetes não é uma doença tão grave... pode ser controlada.
Só é preciso acostumar-se a viver sem doces por toda sua vida.
O médico é muito atencioso com os pais aflitos:
- A menina vai sobreviver... Deixem-na falar palavrões, fará muito bem a ela. Façam-na profissionalmente promissora, isso pode distraí-la por algum tempo, mas caso ela demonstre enfado, esqueçam o Serviço Social e tentem expressar satisfação quando disser que está indo embora para a Escócia trabalhar como garçonete. Apenas se certifiquem de que fez um bom curso de inglês antes, ou a experiência será desastrosa. Nunca critiquem suas roupas e músicas anacrônicas, ela pode debilitar-se fatalmente. Dêem-lhe todos os bons livros do mundo... é a garantia de seu bem-estar. Não deixem que passe muito tempo sem ouvir Noel Rosa – o Poeta da Vila faz tudo ficar mais leve. Vai precisar de doses diárias de vaidade e, embora tenha efeitos colaterais lamentáveis, este ainda é o único medicamento contra a frustração. Vigiem cada molécula de seu corpo, elas estão frágeis como um passarinho. Deixem-na dedicar-se ao comunismo se ela quiser – não deverá fazer-lhe mal nenhum – contanto que não se transforme numa stalinista miserável ou em uma sindicalista decadente (se isso acontecer teremos que sacrificá-la). Nunca velem seu sono, se o fizerem ela sentirá e terá novos pesadelos. Não lhe ofereçam flores, a doença desencadeou uma espécie de alergia que pode ser temporária – ainda não sabemos... E não tentem privá-la da solidão, pois é essencial ao tratamento.
A mãe, com lágrimas nos olhos, pergunta:
- Ela sente dor?
O médico responde prontamente e com um sorriso de complacência:
- Sim, mas é bem menor do que parece...
O pai fala sobre o Grande Gato Amarelo e o médico lembra-se que a menina havia perguntado por ele. Mentiram-lhe a pedido do médico, que acreditou ser desnecessário dar à menina outra notícia tão desagradável... Disseram que o sábio felino se cansou da empáfia dos brasileiros, filiou-se a um partido parlamentarista australiano e foi trabalhar como atendente de farmácia numa cidadezinha ao leste da Tasmânia. Ela pareceu não dar importância... mas balbuciou algum impropério por causa da “promiscuidade política do animal”.
Assim que acordasse iria para casa.
Os pais se olham no corredor e decidem cuidar dos aspectos práticos: a mãe ficaria esperando a filha acordar enquanto o pai iria rapidamente para casa enterrar o maldito Grande Gato Amarelo, para depois correr até a livraria comprar algumas obras de literatura russa.
Olho-a pelo vidro da porta, ela ainda sonha com as uvas...
A menina vai sobreviver.