quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O dizimista


Escorreu tranqüilo pelo asfalto – altivo e seguro de sua singularidade e importância, do impacto de sua cor e do desconforto que causava. Seguiu desviando insolente das ranhuras e irregularidades da rua íngreme.

O primeiro carro parou. O motorista de meia idade, funcionário público, casado, pai de dois e discretamente calvo, entre encantado e aterrorizado, seguiu com os olhos, mas não teve coragem de seguir com os pneus. Atrás, a fila de carros crescendo na rua estreita, alguns até buzinando impacientes, alheios ao espetáculo que dançava rua abaixo um pouco à frente, se exibindo em curvas cuidadosamente elaboradas para o desenho infame que seduzia os curiosos.

Na porta da loja de eletrodomésticos, a vendedora loira e ligeiramente acima do peso também observava com singular afetação o mórbido passeio que seguia com requinte e precisão, como se soubesse exatamente onde deveria ir.

Uma criança de olhos grandes e cabelos desgrenhados aproveitou o estado de total paralisia da mãe e se soltou para segui-lo, mas foi imediatamente repreendido por estranhos mais hipócritas que bradavam ser tal ato uma extrema falta de respeito, embora a criança soubesse que, na verdade, todos estavam mortificados de medo por não saber onde aquilo iria parar.

Durante os longos e angustiantes minutos em que insistiu em sua descida obstinada, o silêncio interrompeu o pandemônio de indignação e horror produzindo um cenário de encantamento que comoveu todos os presentes. Alguns metros à frente, morreu na curva sem avisar ninguém.

O motorista de meia idade, entre frustrado e aliviado, cruzou seu rastro maculando os pneus e foi imitado pelo cortejo de carros que passava lentamente para que os motoristas fossem transformados em testemunhas oculares do fato que contariam nas proximidades da garrafa de café do escritório.

No alto da rua, o morto parecia olhar o desenho que nascia de um triste buraco em sua cabeça. Lá embaixo, na curva, morreu o último fio de vida do pobre morto que iria depositar – religiosamente – o dinheiro da Igreja, mas teve sua cabeça estourada pela bala do revólver de um motoqueiro qualquer que recolheu os dízimos da semana toda as dez da manhã na porta do banco.

No dia seguinte, o conto corria pelas bocas e jornais da cidade: o dízimo escorreu e desenhou no asfalto.