segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

“Não me leve ao pé da letra... essa história não tem pé nem cabeça”


Recolheu tudo de si que havia em volta, até não restar nem lembrança. Sempre acreditou que essa era a melhor maneira de ir embora. Mesmo que invariavelmente esquecesse algo – um par de brincos, um livro, uma toalha de banho, uma calcinha no varal – gostava de pensar que carregava consigo todo o passado. Afinal, não havia outro motivo para a mochila pesar tanto...

Em todo lugar que vivesse, viveria pensando no momento em que iria embora até chegar o tempo em que já não houvesse para onde ir. É que sempre aprendia, dentro de um restaurante japonês ou em qualquer outro lugar onde não se aprende nada, que não estava apta para tantas promessas. E, mesmo assim, preservava sua aparente saúde mental e passava tempos sem conseguir escrever absolutamente nada para fingir que tudo ficaria bem e que ninguém jamais sentiria saudades, pois todos já haviam se acostumado com esse jeito torto de viver que inventamos para que cada despedida se resuma a um abraço com desejos de sucesso em qualquer outro lugar do mundo. Porque sempre acreditaremos que o sucesso nos espera em qualquer outro lugar do mundo.

As vezes doía um pouco, mas havia sempre uma sensação boa em nos deixar, mesmo que não entendesse porquê. O fato é que ir embora sempre a seduziu, porque em cada lugar que chegasse, antes de tudo – principalmente do sucesso – o que a esperava era a solidão. Os fins de tarde calmos, a música que talvez lhe trouxesse alguma lembrança remota, a sensação de que não há amparo e de que tudo pode ficar assim para sempre. Uma existência anônima e desconhecida que caminha paralela ao resto do mundo, que segue um curso próprio e alheio, que segura as próprias mãos e usa todos os adjetivos do mundo. Sonha com isso como quem dorme um sono feliz onde é possível chorar sem se entupir de qualquer bebida alcoólica... Porque onde está, só consegue chorar embriagada e vive o resto do tempo engasgada e sóbria, com lágrimas atravessadas na garganta e uma sanidade vazia que lhe rouba os verbos.

Basta uma semana para que esqueçamos seu rosto, sua voz e o cheiro do cigarro. Quem disser o contrário estará mentindo.

Basta uma semana para que possamos seguir sem ela, imaginando e/ou desejando que o sucesso a espera em qualquer outro lugar do mundo. E, vez ou outra, poderemos ler seus textos e ficaremos comovidos, mesmo que, na maioria das vezes, eles não tenham pé nem cabeça.


"Society, have mercy on me

Hope you're not angry if I disagree...
Society, crazy indeed
Hope you're not lonely without me..."
(Eddie Vedder - Society)

sábado, 6 de novembro de 2010

Limitações literárias


Ele é um ex-coroinha santista: sedutor incorrigível, inteligente demais, bastante polêmico, um pouco intolerante talvez... Conheço-o bem, mas sou incapaz de colocá-lo no papel. Esconde-se e brinca de ser outro, muda o percurso, trai o texto, me estrangula e diz que é a primeira vez que faz isso.

Ela é a moça com quem ele não quer namorar: trinta anos mais jovem, confusa, cansada, gosta de cerveja e Kundera. Anacrônica e insegura. Gosta de adjetivos afetados e brinca de ser decadente... Passeia pela vida e teme que lhe roubem a solidão. Quer morar na Escócia, ser garçonete e ler todos os clássicos do mundo.

Um dia, depois de muito tempo, encontram-se em um bar da cidade, depois num café, depois um churrasco e depois de seis meses os dois personagens continuam me pedindo um conto que não sei escrever. O fato é que eles fogem do roteiro o tempo todo! Assim, nem o Sabino conseguiria...

Observo-os: ele a olha desconfiado – não quer se apaixonar. É muito sensato o nosso ex-coroinha santista... Ela é mais ingênua: apaixonada em homenagem ao que são e deixarão de ser, abraça-o como se abraçá-lo fosse a única maneira de esquecer que.

Dou-lhes verbos leves, literatura fast-food, um caso. Sem dramas nem tramas, apenas uma história de noites agradáveis. Mas, eles não querem! O ex-coroinha santista vai até uma pequena cidade conhecer a família da moça com quem não quer namorar e eu fico perdida. Volto aos verbos leves e ela vem com um piano triste e pesadelos... Chega da casa dos pais e chora, resolve sentir medo e alimenta os fantasmas de amores e desencantos passados.

Enlouqueço. Escrevo um texto de coragem e força, apago e redijo palavras de lamento e nada os agrada. Personagens confusos, não querem viver um grande amor, mas também não sabem ficar na superfície. Injuriada, desapareço com os pudores: dou a ela tetas grandes, um espartilho preto e enveredo pelos caminhos de um conto erótico. O ex-coroinha santista acompanha: tem tara pelos pés da moça, uma coleção de chicotes e muita experiência no assunto. Adoraria escrever esta história, mas jamais conseguiria publicá-la.

Volto a observá-los: estão se olhando. Ele, desconfiado. Ela, cuidando... Jamais serão literatura, apesar de ser extremamente literária a imagem das pernas morenas de um ex-coroinha santista entrelaçadas as pernas intermináveis e tão brancas da moça trinta anos mais jovem.

É lamentável que eu não saiba escrevê-los. Recolho meus verbos e adjetivos afetados e os deixo abraçados. Talvez sejam felizes assim: personagens esquecidos de um conto que ninguém escreveu.

Tela: Os Amantes (René Magritte, 1928)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

(sob) controle


É tudo uma questão de controle: social, da musculatura, mental, da respiração e do apetite. 9 quilos e tudo fecha de novo... Corta carboidrato e a Regiane resolve que vai comer Arnaldo's todo dia! “Doce vingança”, ela diz.

Aguenta firme, Ana... come pera.

Contrai-relaxa-contrai-relaxa-contrai-relaxa. E o TCC esperando a boa vontade da minha musculatura. Dividida entre o controle social e o pompoarismo, entre a Keiko e uma dieta saudável, entre o peso e a leveza.

Natação, caminhar no Igapó ou academia? Um grande amor ou uma brincadeira? Caladinhos, abraçadinhos, comportadinhos – sãos. Tudo em nome da sanidade!

Nem puta nem beata. Curiosa, talvez. Curiosa e bi. Bi... de bizarra. Bi de bi mesmo – adorei. E rimos: “Bi de bissexual”.

Quietinha e sã, encolhida nessa cadeira ouvindo alguém dizer que o Roberto Marinho sofreu muito pra chegar onde chegou e tentando planejar as próximas horas pra conseguir sair viva dessa reunião e tomar uma gelada na Keiko em nome do “sofrimento e vitória do Roberto Marinho” antes que sua aula acabe, que o ar me falte e que a paciência finde e eu grite pra esta topeira que muita gente sofreu pr'aquele fascista chegar onde chegou.

Afirmo que não vou passar a noite aqui e pouco tempo depois caio no sono. Acordo as três e ouço a chuva. É um desses momentos que penso que vou te deixar e me apaixono. Apaixonada porque vou embora, você vai ligar e eu não terei coragem de dizer que não quero mais vê-lo. Inventarei desculpas medíocres até que você entenda e pare de ligar e eu pare de sofrer. Talvez nem se importe. “Era só um caso”, você há de dizer.

Ah... nós e nossos “amores tristes”. Três horas e eu me reviro na cama, chove, você dorme, me apaixono, decido te abandonar e durmo de novo.

Três dias depois: Controle Social, Keiko, os sofrimentos do Roberto Marinho, dieta e eu corro pra te encontrar. Você chega com seus presentes loucos e eu só de toalha. Sugestivo.

Podemos optar por uma divisão técnica, o CMS aprova. Naquela piscina foi a mesma coisa e você nem percebeu. Tem reunião na 17ª amanhã. Fiquei comovida com a sua satisfação e a minha melancolia. Esta prestação de contas patética e o CMS também aprova. Caminhada segunda, quarta e quinta. Restrições, meu bem? Não, nenhuma. Tem pera ali na quitanda. “Às vezes, me sinto apaixonada por você... mas, é só às vezes.”

Eis o Controle Social e o auto-controle. De fundo, um samba avisa: “A gente ri, a gente chora e joga fora o que passou”...

Contrai-relaxa-contrai-relaxa-contrai-relaxa.

Enfim, temos (quase) tudo sob controle.


A gente ri, a gente chora

E joga fora o que passou

A gente ri, a gente chora

E comemora um novo amor”

(Novo amor – Roberta Sá. Composição: Edu Krieger)


quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O que você quer?


Queremos viver encharcados de literatura, mas também queremos uma metodologia para este projeto que nem existe e já assombra.

Queremos este romance torto que caminha entre a cegueira do dia e as marcas do ontem.

Queremos esta história louca que vai acontecendo do jeito que dá e também queremos fazer no banheiro do bar, meu bem... Dane-se essa gente e o que irão pensar. Sem nobreza e sem virtudes, seguimos derramando nossos amores desbotados e nossos sofrimentos anacrônicos sobre o que nos resta de lucidez as seis da manhã. Entre os trinta anos que nos falta ou que nos sobra, queremos recolher nossos pedaços pelo chão do quarto no dia seguinte, rindo do mistério da origem desse machucado na coxa esquerda e dessa cama quebrada e desse brigadeiro quente com pão que se justifica sobre a mesa. Queremos a loucura e temos um plano terrorista que envolve pole dance e um ônibus, mas ninguém da equipe tem força muscular pra isso.

Queremos um caso que não tenha fome nem memória, só o dia de hoje pra respirar e saudar e colorir e prosear. Queremos um clássico do terror logo mais tarde, cães psicologicamente saudáveis e aulas interessantes pra nos inspirar.

Queremos falar mal do que não sabemos e fazer poesia na mesa do bar.

Queremos a vida feito um samba de Noel.

Queremos citar Nietzsche, Stendhal, Flaubert e Shakespeare como se fossem gírias de uma geração perdida enquanto navegamos em águas mansas e buscamos a noite que logo finda.

A noite-efêmera-feito-nossa-existência. Não há mais tempo, meu bem...

Apenas o silêncio dos nossos bolsos sem perspectivas sexuais.

Não há mais tempo.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Quanto custa?


Considerar que a saúde está deixando de ser um direito para se transformar em um bem de consumo pode ser uma visão imediatista. A parceria público/privado presente na legislação e no cotidiano do SUS mostra que, apesar da Reforma Sanitária e de toda a luta social em torno da política de saúde no Brasil, esta sempre foi manipulada como uma mercadoria.

No entanto, o contexto histórico apresenta um acirramento das discussões e dos caminhos futuros das políticas públicas brasileiras. A Educação a Distância e o PROUNI na Educação, bem como as Organizações Sociais e Fundações Estatais de Direito Privado na Saúde colocam no centro da discussão o avanço da estratégia neoliberal de privatização do Estado por meio da redução de suas funções junto à sociedade por via das políticas sociais. O Estado na lógica neoliberal se torna cada vez mais um instrumento da classe burguesa para construção e manutenção das condições ideais de acumulação de capital e perpetuação da exploração do proletariado.

Refletir sobre a ideologia que embasa a privatização das políticas públicas nos leva a questionamentos acerca do papel da democracia neste momento histórico, quando a burguesia se utiliza dos valores democráticos para manipular a opinião pública e engendrar a Reforma do Estado, sucateando instituições e serviços públicos, desvalorizando e desqualificando o funcionalismo estatal, precarizando o processo de formação e trabalho nas instituições estatais, até que a sociedade acredite que o privado é melhor, que a mercadoria possui qualidade, enquanto o direito é uma falácia.

Desta forma, as políticas sociais públicas se entregam ao ataque neoliberal, o regime democrático se torna o cenário perfeito para uma reforma que a sociedade manipulada aceita e até embala em seu discurso ideologicamente construído pela classe dominante para que não haja conflitos.

Assim, as políticas públicas e os direitos de cidadania morrem pacificamente pelas mãos da classe dominante que tem a democracia burguesa como arma.

E quando o assunto for Saúde a sociedade haverá de perguntar: "Quanto custa?"

Por ora, perguntamos:

"Quanto custa um direito universal?"

domingo, 22 de agosto de 2010

A Lady e o Dramaturgo


Um bom lugar pra morrer”. Vamos ao lançamento do livro ver o Dramaturgo de perto, gostamos dele, tem tudo pra ser uma tarde interessante. A Dani não o conhece, diz que poderia tropeçar nele e dizer “desculpa aí”. Rimos, falamos sobre o episódio do tiro, andamos de um lado pra outro dentro da livraria, a movimentação aumentando, até que ele aparece. Chega distribuindo apertos de mão, tapinhas nas costas, algumas câmeras em volta, aquele circo. Tem algo estranho... O Dramaturgo tingiu os cabelos de preto-azulado. Pergunto o preço do livro e um sujeito me diz que custa 25 reais, mas vale muito menos. Mesmo assim eu compro. Tem uma mulher com sapatos floridos vendendo os livros e o Dramaturgo está numa mesa ao lado. Paro na sua frente e espero que autografe. Ele conversa com um sujeito, não sei o que falam, o Dramaturgo enrola com a caneta na mão e eu fico esperando. Até que rabisca um “Para Lady”... Porra! Observo a cabeleira preto-azulada para me certificar de que é mesmo o Dramaturgo e não o Wando que assina meu livro. Tenho vontade de pedir que risque o Lady, mas ele não ouviria – continua conversando com o outro sujeito e continua rabiscando qualquer coisa no meu livro. “Muito obrigada”.

Para Lady Ana Paula”... Lamentável.

A Lady vai embora e folheia os versos do Dramaturgo. São bons. Ele é grisalho na foto do livro e o Pedro liga perguntando se a Lady vai ao show do Dramaturgo a noite. “Vou não”. Quando escurece a Lady vai beber cerveja barata na Keiko em boa companhia, ri desse bando de artistas e militantes e vagabundos adoráveis, encosta a cabeça na parede e pede que mudem de assunto quando dizem que o Netinho de Paula é candidato a senador e, entre um cigarro e outro, quando a madrugada avança e as garrafas se acumulam sobre a mesa, já falamos de poesia concreta, poesia romântica, partidos políticos, Teatro do Oprimido e descobrimos que o Renato Russo era EMO (ou não!) e que pode ser que nós também somos e que na mesa ao lado existe “Um jeito blues de se ferrar”...

A Lady sente o vento frio da madrugada insólita voltando pra casa e se lembra do verso do Dramaturgo de cabelos recém tingidos: “ainda tem humanidade de sobra nessa carcaça renitente”. O autógrafo? Sei não... ninguém entende a letra. Só sei que no final ele me manda um “mó beijo”. E só.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

De encomenda


Acordou confusa depois de sonhar com um tempo em que já não fariam falta nem sentido. O Anjo Descabelado alisava as asas e cantava um samba choroso empoleirado no encosto da poltrona na frente da janela, de costas para a Bruxa Roberta, numa imagem tão celestial que parecia ser ele quem iluminava a manhã e não o inverso.

A Bruxa ficou prontamente irritada e quis começar uma briga. Mania besta de empoleirar em tudo que é canto... Mas, como brigar com uma criatura com asas?

Eis um romance conflituoso... Começaram bem – sem expectativas, depois deram um fim aos pudores e acabaram matando a poesia. Nada mau para um Anjo e uma Bruxa.

Ele, portador daquela paz de espírito sobre-humana – nunca raivoso – no máximo triste e melancólico com seus sambas de lamento, alisando as penas grandes das pontas das asas para toda a eternidade de anjo que é todo bondade.

Ela, briguenta, mau humorada, xiita incorrigível e sempre a flor da pele. Passional. Uma verdadeira bruxa com seus feitiços tresloucados e a militância pra tudo que é causa que confira alguma dignidade ao universo obscuro de sua espécie.

Mais obscuro é o futuro do casal nesta história mal contada com pretensões de conto de fadas (des)encantadas.

“Mais um desses feitiços e eu desisto”, pensou o Anjo enquanto acendia um cigarro e fingia não saber que ela já estava acordada e pronta pra brigar.

“Ou ele reage ou eu o mando à merda dessa vez”, prometeu em pensamento a Bruxa ainda meio sonolenta e pessimista.

Mas, nesta manhã iluminada e idílica, o Anjo deixou de lado sua natureza divina e voltou o rosto crispado para a Bruxa, que sentou entre os lençóis e correspondeu a altura.

Brigaram até a exaustão. Os vizinhos ouviram e nunca mais voltaram a acreditar que aquele sujeito que gritava, esbravejava e esmurrava a porta poderia ser mesmo uma criatura celestial, dotada de inocência e virtude. A Bruxa Roberta quebrou o relógio, o cinzeiro, as taças e a garrafa de vinho que ainda guardava um pouco da bebida e formou uma bonita mancha rubra na parede lateral do quarto. Porém, o único objeto arremessado que atingiu o Anjo foi uma das taças (sem causar grandes ferimentos) e suas penas se eriçaram feito as de um animal ameaçado e a marca vermelha que a Bruxa carrega desde seu nascimento entre as sobrancelhas ficou ressaltada em sua pele pálida de Bruxa histérica.

Foi um pandemônio. A explosão de todos os sentimentos humanos em dois seres apartados por aquilo que são.

As Fadinhas Sem-Graça se reuniram boquiabertas na calçada e tentaram intervir. Uma delas foi atirada pra fora por um olhar da Bruxa que poderia derrubar até um Gigante. Aliás, este também tentou, mas foi expulso pelo Anjo Descabelado que batia as asas e xingava ao seu redor, gritando até atordoá-lo com seus impropérios de Anjo louco.

Toda a cidade aguardava apreensiva pelo fim daquela balbúrdia. Previam a morte do Anjo (um ser tão frágil e delicado) ou da Bruxa (menos provável considerando a maldade que lhe é inerente). O certo, para todos, era a morte do amor. O fim do romance que a cidade nunca abençoou e as bocas medíocres já alardeavam com singular afetação: “Só podia dar nisso”.

O que ninguém sabia era que aquele deus-nos-acuda resultaria numa fundamental reconciliação daqueles seres inconciliáveis por natureza. E a mancha de vinho na parede lateral do quarto marcaria para sempre a manhã idílica em que a Bruxa Roberta e o Anjo Descabelado se encontraram no meio do caminho daquilo que são.


Dedicado à Roberta. E o título ela há de entender.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Substituição


Trata-se de um dos mais bonitos bares da cidade – o que não significa que seja um dos melhores. A decoração é interessante, bem como o cardápio, a música e a iluminação.

Chegam de mãos dadas. Ela é esguia e um pouco desajeitada. Talvez fosse bonita se cuidasse dos cabelos e da pele... Carece de elegância e não sabe combinar cores.

Dele não me lembro muito bem. Apenas que é mais baixo, mais moreno e mais velho do que ela.

Como eu dizia, chegam de mãos dadas em um dos bares mais bonitos da cidade e ele se sente em casa. Ela, num circo. É apresentada ao dono do estabelecimento e a um outro senhor que bebe qualquer coisa ali no balcão. Cumprimenta-os e abaixa a cabeça, mortificada, sem saber por que.

Estou tentando me lembrar o que acontece depois por causa do conto...

Vejamos: pedem cervejas de marcas diferentes. Ficam de mãos dadas sobre a mesa e sob alguns olhares do casal da mesa ao lado. É aceitável que estejam ali, mas o bar a reprova mesmo sem ouvir o que ela diz. Sabemos apenas que não deveria falar sobre estes assuntos e, talvez por isso, o garçom se detém junto a mesa e desata a falar de futebol.

Voltemos à superfície...

Pedem mais cerveja. Ela já está um pouco zonza de tanto beber, rir e falar num outro bar (um dos piores da cidade) com cerveja em copos de plástico e na companhia de uma loira adorável.

Ele vai ao banheiro e ela observa os quadros na parede da frente. Parece que se sente abandonada ali, longe das mãos dele. Mas, minha mesa não está num lugar privilegiado, a iluminação não colabora comigo e eu também já bebi demais, portanto não ouso afirmar nada com relação a esta ideia de abandono.

A comida demora. O dono do bar não é nada simpático com os clientes. Ele está de volta. Mãos dadas... A ideia de abandono desaparece.

Carregamos as pessoas conosco por muito tempo. “Suas mãos batucando no painel do carro”, ela diz. É isso que pretende levar consigo. Só isso mesmo...

Comem, ele paga a conta sozinho e o bar a repreende por isso também.

Vão embora e nenhum conto aparece no bar. Fico parada com a caneta suspensa no ar, o papel em branco.

Saem. De mãos dadas? Esqueci de observar.

Mas sei que tem um conto com eles.

No sofá da sala, tiram os sapatos e falam sobre os pés dela.

No escritório, ele mostra fotos de uma mulher paraguaia no computador e ela comenta qualquer coisa sobre os seios da moça.

O conto aparece no quarto ao lado um segundo depois.

Mais tarde, conversam abraçados e ela gosta de sentir os lábios dele roçando sua pele.

É um conto feliz. Porra! É um conto feliz que eu nunca vou conseguir escrever.

“Sua respiração na minha pele”, ela diz sorrindo. “Pretendo levar isso também”.


Imagem de Nicoletta Tomas

domingo, 20 de junho de 2010

Nota de falecimento


Ao invés de um texto, publico hoje a nota de seu falecimento. Foi morto na manhã do dia 18 de junho, pois seu bater de asas causava incômodo e repulsa. Teve vida curta e anônima. Nasceu de uma noite insólita de espanto, sorrisos, cerveja e um bom filme. Morreu pelo novo. Morreu de distância, de solidão e de lembranças que passeiam perto da porta logo cedo.

Ao ser questionado, o assassino alegou que o texto era feio. Compreendo...

Porém, deixo meu lamento pela morte prematura deste que, sem pretensões nem a beleza das borboletas, voava desajeitado e repulsivo naquela manhã fria enquanto a vida doía dentro e fora de mim.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Idéias suicidas


Ela: Quero te ver amanhã.
Ele: Pra quê?
Ela: Por que a pergunta?
Ele: Preciso saber o que será dessa vez.
Ela: Dessa vez é de verdade.
Ele: Então diz.
Ela: Posso te dizer amanhã.
Ele: Preciso ter certeza hoje.
Ela: Quero continuar o que começamos há três anos.
Ele: Você tem certeza?
Ela: Tenho
Ele: Por que demorou tanto?
Ela: Você sabe...
Ele: O que aconteceu contigo?
Ela: Fiz tudo errado. Mas isso não é nenhuma novidade.
Ele: O que você quer?
Ela: Me esconder.
Ele: Quer se esconder na minha cama?
Ela: Sim, senhor.
Ele: Acabei de fazer um café.
Ela:
Ele: Vem hoje...
Ela:
Ele: Vem hoje.

E não havia lugar melhor pra ela se esconder do resto do mundo naquela tarde fria de sexta-feira.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

“Conversa de Botas Batidas”


E já que dói mesmo o jeito é lamber as feridas com uma trilha sonora de qualidade, todas as marcas de cerveja que o bar servir e sempre, sempre em boa companhia. Parece loucura, mas quando a coisa toda já está um caos a gente sai pra ouvir Los Hermanos. Não me parecia uma boa idéia ouvir centenas de pessoas cantando: “É o mundo que anda hostil”...

Porque anda sim! As Organizações Sociais estão invadindo o mundo e as políticas públicas se entregam passivas à privatização.

Mas, um convite bem feito não pode passar em branco. Fingimos que ninguém tem TCC (ai cacete, falei!) pra fazer, que a militância pela saúde não está cada vez mais desesperadora, que a PA da galera está sempre em 120x80, que o coração bate na cadência da vida perfeita e vamos felizes da vida descobrir que “alguma coisa a gente tem que amar, mas o que? eu não sei mais”...

E também não era qualquer um cantando. Era um mesmo tal João que já cantou Chico e me encantou com aquele jeito todo bom de embalar as dores e os amores de muita gente sofredora aqui na Pequena Londres. Entre “doces deletérios” e “escravos sãos e salvos de sofrer” constatamos que este tal João é mesmo estranhamente bonito, extremamente simpático e profundamente talentoso. Tanto que fiquei naquele bar pequeno, abarrotado de gente e sem espaço pra fumantes “até o fim raiar”.

Depois? Ir pro trabalho atrasada no sábado porque uma nuvem dessas gordas e pesadas que correm baixas com o vento despencou bem na Avenida Brasília logo cedo e o trânsito virou um caos. Ninguém enxergava um palmo na frente do nariz em meio aquela confusão branca.

E agora a vida segue neste mundo onde as nuvens despencam lá do céu e “Deus parece as vezes se esquecer”...

Porque logo a nuvem se dissipa, um tal João embala mais um dia de feridas antigas, amores desbotados e ofensiva neoliberal enquanto “especialistas analisam e sentenciam: oh, não!”



Banda Matitaperê – boa música sempre!

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Pra quem bate e quem apanha


Sabemos que recentemente levei uma forte bofetada, dessas que fazem a gente perder o equilíbrio e cair com a visão turva, as pernas trêmulas e a face em brasa. Sabemos também que a mão que bateu ainda passeia por aqui.
Também é de conhecimento de todos que isso acontece todos os dias com várias pessoas em diversos lugares do mundo. Existem milhões de faces esbofeteadas e mãos cruéis por aí e lei nenhuma que possa restringir por onde essas mãos e faces podem passear. Logo, este blog continua sendo espaço de livre acesso para todos os corações que batem e/ou apanham.
Porém, gostaria de expressar que fico injuriada com o comportamento de uma mãozinha desaforenta que, depois de bater com força na cara da dona deste blog, ainda aparece por aqui e por outros cantos onde costumo sambar, pra dizer palavras que queimam mais do que a própria bofetada.
Vamos deixar claro uma coisa: quem apanha, chora, porque a coisa em si já dói pra cacete e ainda tem alguns agravantes como quando a mão que bateu é aquela da qual você só esperava afagos. Por outro lado...
E quem bate? Faz o quê? A mão que bate deve ser feliz sem se preocupar com as dimensões da marca que deixou.
Pode até chorar também, só que sem fazer alarde. A mão que bate tem que se comportar como tal em sinal básico de respeito pela face que levou e continua ardendo. Sabemos há tempos que esta mesma mão já foi, provavelmente, uma face ferida em algum outro episódio da vida... mas, agora, neste contexto, nesta situação específica ela é-a-mão-que-bateu-e-estraçalhou-com-o-rostinho-de-alguém! Não tem jeito de assumir outro papel. Não dá pra inverter e fingir que apanhou e que sofre e que sente dor.
Pra ser mais clara, mãozinha:
EU sofro!
EU me lamento!
EU acordo todos os dias e vejo no espelho a marca da humilhação, porque EU me sinto humilhada e ridícula e, ainda assim, tenho que acordar e pentear os cabelos e sair de casa e ser assistente social 8 horas por dia enquanto sinto a face queimar e sei que muita gente aí também vê a marca e comenta baixinho: “Coitadinha dela...” “Pobrezinha, como dói apanhar assim...”
EU passeio por aqui pra chorar de dor, pra tentar recuperar a firmeza das pernas e do espírito, pra sangrar a ferida que lateja nas noites de sono ruim...
Sou EU e não você, mãozinha!
Portanto, penso que cada qual deve se comportar conforme o estrago que fez ou sofreu. Sei muito bem que também já fui uma mãozinha maldita na cara de alguém e não nego os tapas que dei.
Apenas quero, nesta situação, desfrutar do direito legítimo e inalienável que essas marcas que carrego me conferiram, de sofrer e me lamuriar e dar de vítima até cansar, no papel de pobre-coitada-idiota que me cabe, sem que mão nenhuma venha me roubar a cena.
Em suma, que todas as mãozinhas e faces e corações e espíritos livres se sintam a vontade por aqui.
Batendo ou apanhando, todos serão sempre bem vindos. Só que vocês, mãozinhas, não me venham com vitimismos sem pé nem cabeça lamentando o que dói pra quem bateu...
Porque só quem apanhou é que sabe a raiva que isso dá.

terça-feira, 30 de março de 2010

Aquarela


Daí ele disse que logo passa. Só isso.
Vivemos à nossa maneira, coroados de insanidades, fantasiados de bons profissionais, vestidos de cansaço, (in)vestidos de projetos, curados de toda doença emocional que nos dilacerava até bem pouco tempo atrás.
Daí ele disse que tem um jeito novo e bom de se (re)inventar quando você descobre que não cabe no útil nem no agradável.
Pode odiar à vontade, só não vale mais chorar. Pode descobrir que a única coisa confusa por aqui é a cor dos olhos. Tem dias que são verdes, mas se eu ficar olhando por mais alguns segundos eles ficam azuis e eu desisto e te abraço. E, dessa vez, minha loucura atira uma pedra no canto mais colorido de um mundo que não entende muito bem o verde e o vermelho. E todas as cores se misturam nesses dias de Participação Popular, de Terra Celta no Valentino, de fuxico e promoção de saúde, do macarrão delicioso que você faz no domingo.
Estivemos à beira do abismo ainda ontem e hoje somos as pessoas mais normais que nossos amigos conhecem. Nem bebemos mais, vemos filmes na noite de sábado e vamos comprar cigarros de mãos dadas. Uma peça de teatro no final de semana, um velho amigo por boa companhia, livros novos comprados compulsivamente por influência da Ogra que “a gente mais amamos”, pré-banca é um deus-nos-acuda e os dias vão te empurrando lentamente pra um estado de espírito bem parecido com a cadência do samba.
Daí ele disse que eu seria muito mais feliz do que poderia imaginar depois que me descobrisse livre, inútil e desagradável. Maldita e filha da puta. Carente de qualquer doçura e cética até a medula para aqueles cuja única verdade está no discurso de palavras rebuscadas.
E para aqueles que buscaram a verdade em cada canto insólito deste mundo onde as cores atordoam de tão reais e vivas e boas... Para aqueles que aceitaram sua loucura e voltaram para a vida com a humildade e a força de verdadeiros seres humanos... Para estes, ele disse que eu posso ser toda a loucura e me (re)vestir daquilo que sou.
Uma verdadeira filha da puta... e dona de todas as cores do mundo.

quarta-feira, 17 de março de 2010

"Essa pequena epifania"


Suco de laranja, AllStar e dois livros sobre a mesa do Valentino...
De presente, pouco antes de ir embora, a Verdade. Boa e simples como há tempos não se via por aqui.
A mensagem deliciosa 00:05h.
Tua voz suave conversando com a Chica enquanto tento esconder meu constrangimento diante da bagunça do meu quarto.
Voltar pra casa caminhando.
Sem álcool e sem expectativas.
Sobrevivemos.
Já é outono! O vento é bom pela manhã.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Os Anjos


Aquele anjo velho voltou a me visitar a noite. Sentou-se no canto da minha cama com seu ar de profundo cansaço e me olhou dizendo que eu podia dormir tranqüila, que a loucura é mansa e que a vida ia passar bem de leve a partir de hoje... pra doer só um pouquinho.
Fiquei deprimida ao vê-lo tão cansado e ele me disse que o cansaço é todo meu, depois me contou que ele sempre vem assim, do jeitinho que eu estou, só pra me mostrar o que não quero ver. Pedi desculpas, abracei-o e disse que estava tentando.
Ele disse que eu podia chorar.
Fiquei emocionada e me senti infinitamente sozinha. Ele me explicou que todo mundo está só do lado de cá e que ele sempre soube, desde a hora que eu entrei naquele avião, que aquela história ia dar na merda que deu. Pedi desculpas de novo e ele sorriu, cansado.
Contei que quero fazer teatro e que o trabalho vai bem. Que dormi muitíssimo durante as férias e que tenho me sentido muito sem graça. Que vou começar a psicoterapia na segunda semana de março e que espero que isso dê um jeito nessa mania besta de ficar chorando por qualquer coisa.
Ele disse que eu deveria cortar os cabelos e que compôs um samba que eu vou amar. Pediu-me um cigarro, abriu a janela e ficou algum tempo olhando o céu.
Perguntei se tanta tristeza vai passar logo e ele não respondeu nada.
Depois, voltei a dormir e o deixei sentado no canto da cama, cansado... com seus ombros curvados na escuridão, como se suas asas e meu cansaço fossem pesados demais para o seu corpo frágil de anjo velho.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

como manter a sua (in)sanidade mental - em doze passos:


- leia sempre Caio F;

- cultive sentimentos destrutivos como ciúmes e auto-piedade;

- não beba nenhum tipo de bebida alcoolica (se beber, volte pra casa de táxi e chore todas as sua mágoas para o taxista);

- tente namorar alguém que nunca atende o telefone;

- acredite que todos os participantes do Big Brother Brasil são pessoas iguais a você (têm sentimentos, são imbecis e querem ficar ricas);

- faça Residência Multiprofissional em Saúde da Família (com a equipe mais amada pelas jamantas, raios, exús, neoplasias e garçonetes malditas);

- acredite piamente: você é a Maria do Bairro;

- chore pelo menos três vezes ao dia (para isso você pode usar qualquer tipo de estimulante como propagandas de banco, filmes de amor ou até mesmo as novelas do Manoel Carlos);

- odeie seu cabelo, seu peso e seu desempenho profissional;

- deixe Deus injuriado dizendo a Ele milhões de vezes por dia uma única frase: "tô na merda";

- foda com a sua coluna lombar fazendo-a acreditar que é ela quem carrega todo o peso da sua imbecilidade; e

- aproveite muito bem as suas merecidas férias para passar trinta dias unicamente fumando, chorando e dormindo.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O mesmo nome


É só esta lágrima que escorre mansa sem expressão de dor, nem músculos da face se contraindo nem nenhuma outra demonstração de sofrimento. É só a mansidão da tristeza certa, sem o desespero da dúvida, sem guerras contra o próprio estômago, sem bebedeiras nem lamúrias porque não vale mais a pena gritar nem brigar nem discutir esse assunto com as amigas pedindo conselhos ou ouvindo opiniões isentas de culpa ou emoção ou amor. É só uma ferida que dói como deve ser a dor dessas cirurgias antigas em dias de chuva.
É só o abandono que vai se fazendo íntimo e a solidão que volta a sentar ao teu lado na beira do rio enquanto você acende um cigarro e sorri comovida ao vê-la depois de tanto tempo chegar assim... meio cerimoniosa para enxugar as tuas lágrimas e dizer que está tudo bem, que tudo isso vai passar antes do que você pensa.
É só a brisa do rio que te acaricia os cabelos e te avisa que a ferida estará sempre no mesmo lugar, você só precisa se acostumar com a dor e com os dias de chuva e com as lágrimas que escorrem furtivas nessas férias em que, de repente, um outro rosto que carrega o mesmo nome te abraça sem perceber e te fala com um carinho descuidado de como pensa que você é e tenta te alcançar para saber de onde vem esta lágrima e pra onde vai este olhar que você mantém fixo no rio enquanto este outro rosto te olha sob o sol que faz a água brilhar e brilhar e brilhar até o horizonte que você não se atreve a encarar agora. Não nesses dias de férias e no meio dessas lágrimas e na presença deste rosto bonito que tenta entender a tua tristeza sem palavras, sem expressão e sem coragem.
Essa tristeza que você vai derramando devagarinho na água esverdeada do rio enquanto a solidão senta sobre as tábuas do velho trapiche entre você e este rosto bonito que carrega o mesmo nome.
E, assim, você sabe que tudo está voltando a ser o que era antes e que nada deveria ter saído do lugar.
Assim, você vai se lembrando de que sempre esteve sozinha e que há de ser assim para sempre e isso te dá um certo conforto...
E, assim, você vai se acostumando de novo com o que sempre lhe foi íntimo e chora a dor do que morre a cada porção de amor e tristeza que vai se misturando à água esverdeada que passa rente aos seus pés.
E você se reconcilia com a solidão que jura nunca mais te abandonar e sorri para o rosto estranho que te olha sem saber que, neste exato momento, você se deixou cair morta e esquecida com toda a tristeza e todo o amor no fundo do rio que brilha sob o sol e acolhe a dor de mais uma ferida velha demais que decidiu nunca deixar de sangrar.
"Você me leva pra comprar cigarro?"
"Levo sim, minha florzinha..."
E você vai, sem deixar de se despedir do rio e de você mesma e do amor que já não se vê sob a água.
E você vai, como uma "florzinha" fraca demais ao lado deste rosto que carrega impunemente o mesmo nome e te abraça como que para se certificar de que você não ficou morta e esquecida com todas as lágrimas e tristezas e amores que derramastes devagarinho junto ao rio.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Pois é...






E, mais tarde, me disseram que Oswaldo Montenegro confessou que o romance de Leo e Bia não deu em nada. Talvez a janela tivesse razão... Tentaram. Tentamos.
"Humanos que são."
"Humanos que somos."

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Enquanto isso... no quarto de algum hotel barato.


Ela: uma janela de madeira branca que se abre para que as luzes da cidade possam invadir o amor no fim da tarde.

Ele: um ventilador escandaloso que atrapalha o sono, mas ajuda bastante neste calor miserável que faz por aqui.

Os dois olham entediados para a cena que se repete. Mais um amor que se consome dentro deste pequeno quarto num hotel barato da capital. É o primeiro dia, a coisa mal começou e a mocinha já está chorando. A janela a critica, mas o ventilador sai em sua defesa dizendo que não há problema nenhum em ser sensível. Conversa longa, olhares felizes, detalhes escancarados aos olhos dos dois amantes que esperaram muito tempo por esse momento. “Tudo igual”, diz a janela, “só muda um pouco o contexto, as frases românticas, as revelações comoventes, o ritmo... No final dessa conversa os dois fazem amor e ela chora de novo, emocionada”. O ventilador a repreende: “Precisa ser tão amarga? Os dois tem futuro, parecem realmente apaixonados. Outros já estariam trepando desde o primeiro minuto. A conversa vai bem, tem entrosamento, sinceridade... ingenuidade até!”

A janela ri: “Isso não vai dar em nada. Logo a mocinha vai embora e essa história morre aqui, bem debaixo dos nossos olhos.”

Três dias vão passando. O ventilador se interessa pelos hóspedes e até se comove: “Veja como estão felizes”. E a janela até acredita que dessa vez pode ser que a história de amor vingue.

Declarações de amor, sexo, sair, mãos dadas, carinho, a dedicatória modesta no livro do Galeano e outra deliciosa em um do Gabo. Mais lágrimas... “Como chora, essa garota. Deus me livre”. Dessa vez, é o ventilador que ri e concorda.

A hora fatídica: despedida. Nem precisa dizer que a mocinha está se desfazendo em lágrimas e o mocinho parece... sei lá, talvez esteja constrangido ou confuso ou profundamente triste. Mas, o rapaz não chora. Abraça a mocinha chorona, diz palavras de conforto e chama a atenção do ventilador e da janela com a frase que marca o desfecho dessa e de todas as outras cenas que se repetem eternamente dentro dos quartos de hotéis baratos: “Em breve eu vou ao seu encontro”.

A janela olha com um sorriso irônico para o ventilador, que parte em defesa do amor mais uma vez: “E eu acredito que ele vai mesmo.”

A janela se concentra na luz deprimente que invade mais este amor que, para ela, acaba de morrer bem ali, debaixo dos seus olhos.

Pelo menos o ventilador ainda acredita e, para ele, o amor fecha a porta e vai embora de mãos dadas para sempre.