segunda-feira, 30 de março de 2009

Na madrugada densa de chuva


Olhou a chuva na luz do poste pensando nela e em tudo que haviam conversado.
Quis ligar para saber como ela se sentia...
Mentira. Queria ligar para dizer a ela como estava se sentindo, pois não conseguia ter qualquer sensação e não contar a ela.
Sentir estava sempre relacionado a ela e aquela chuva torrencial o fazia sentir com mais intensidade.
Não queria olhar para dentro daquele quarto vazio, pois seria igual olhar para dentro de si mesmo e não vê-la sabendo que todos os seus livros e CDs estavam impregnados dela, do cheiro, do sorriso, da voz e da falta que ela faz.
Atravessou o quarto e desceu as escadas.
De repente viu-se na calçada ao pé do poste sentindo a chuva molhar seus cabelos que escorriam acariciando seu rosto.
Sentiu a camisa colando na pele.
Sentiu frio.
Sentiu-se vivo.
As gotas massageavam os músculos tensos de amor dos seus ombros, a dor foi passando e ele decidiu que nunca mais ligaria, nunca mais a veria em livros e CDs, nunca mais... Nunca mais.
Correu os poucos quarteirões que separavam sua casa da dela. Os tênis pesados de chuva, a pele arrepiada de frio e de ansiedade e os músculos tensos de amor.
Gritou seu nome na calçada sem se importar com a hora avançada da madrugada densa...
Ela estava na varanda e não se espantou ao ver o homem que amava naquela madrugada chuvosa...
Abraçou-o e o ouviu dizer que não a queria em livros ou CDs ou dentro de si. Queria-a nos braços, na pele, sob a chuva torrencial...
Iluminada pela luz de um poste na madrugada densa de chuva.

Foto de Roger Rodrigues – o futuro Historiador a quem dedico este humilde texto escrito ao som de True do The Frames.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Cardiopatia


As pessoas atribuem o amor ao coração...
Nem sei por quê! Alguém sabe?
O fato é que sou cardiologicamente imune ao amor.
Mas, como o organismo humano é capaz de se adaptar a (quase) tudo, o meu deu um jeitinho nesta deficiência e transferiu a responsabilidade para um órgão que curiosamente aceitou a missão.
Meu estômago assumiu a administração do departamento sentimental.
É um desastre.
Não estou aqui me queixando... É apenas o depoimento de alguém que vive em conflito com as próprias vísceras.
O estômago não dá conta sozinho, por isso envolve a cabeça e todo o sistema respiratório que, diga-se de passagem, constitui-se de órgãos absolutamente ignorantes no assunto.
Isso aqui virou um pandemônio.
O estômago perdeu o controle e a autoridade.
O sistema respiratório está desesperado.
E a cabeça só faz doer.
Preciso imediatamente de homeopatia...
Ou de você.

sábado, 21 de março de 2009

Heroes


Você sempre me faz chorar.
Principalmente quando passa muito tempo longe.
Sinto-me péssima.
Vem aquela sensação de que você está cada vez mais afastado de mim. É quando sua falta dói...
Tenho aquelas noites degradantes de lágrimas, dezenas de cigarros e músicas melancólicas.
Sempre chego ao trabalho com os olhos inchados e o estômago em frangalhos na manhã seguinte. Dia desses uma amiga perguntou o que me aconteceu e eu disse que fui exposta por muito tempo à música ruim e que sou alérgica.
Às vezes, conto para alguém as coisas que você me diz.
Aí, eu me sinto um pouco melhor.
É por isso que valorizo tanto os amigos: eles fazem tudo parecer mais simples.
Lamentando-me para algumas amigas, contei-lhes sua frase memorável:

“SERÁ QUE PELO MENOS UMA VEZ NA VIDA NAO PODEREI DEIXAR DE
SER O SUPER-HOMEM...
E ESPERAR QUE ALGUEM ME SALVE???”

Foi o suficiente.
Agora tenho vários apelidos por aqui:
Mulher-Maravilha, Tempestade, Electra, She-ra, Xena e até a Sara... aquela do Cavalo de Fogo.
Daí formou-se a cantoria daquela música da abertura com vozes tão desafinadas quanto a da própria mulher que cantava no desenho.
E da Sara pulamos para a Caverna do Dragão, Tom e Jerry, Pica-Pau, Ursinhos Carinhosos, Muppets, Popeye e toda a fauna animada da saudosa infância.
Então, você se perdeu no meio do Mestre dos Magos, do Gonzo, Brutus, Leôncio e mais uma legião de personagens fantásticos...
E as amigas transformaram tudo em algo muito simples:
Nosso amor mal sucedido é apenas uma estória...
E nós dois, apenas personagens iguais a esses de desenhos animados que víamos há muito tempo atrás.

“We can be Heroes
Just for one day”...

terça-feira, 17 de março de 2009

Medo

Descobri que monstros existem sim!
Depois que a delirante infância foge assustada, deixamos de acreditar neles...
Tenho 22 anos, a minha infância já fugiu há algum tempo.
Mas, sei que eles existem e estão por toda parte.
Antes apareciam apenas a noite, na escuridão, em meio ao sono...
Antes eles não tinham cor definida.
Estavam apenas nos pesadelos...
Tinham diversos nomes, eram disformes e petrificados.
Agora são reais.
Vejo-os durante o dia, iluminados pela luz do sol...
De olhos bem abertos...
Usam máscaras e palavras de anjos, são gordos, simples e até simpáticos.
Têm mãos, cabelos e sorrisos...
Carros, casas, nomes, datas e legendas...
Amam, se casam e têm filhos.
Atacam quase sempre os olhos, mas às vezes também atingem o sistema respiratório.
Aprisionam músicos e personagens literários em cavernas frias e escuras.
São muito violentos e odeiam a humanidade.
Um deles atacou meus olhos...
Mostrou-me seu verdadeiro rosto.
Tenho medo de monstros.
Eles estão por toda parte.

Existem monstros de verdade.

Escultura de Jane Alexander.

terça-feira, 10 de março de 2009

Vem...


O garoto está tentando se esconder...
O medo o faz chorar.

“Vem aqui, menino. Eu sei de todas as coisas...
Tenho uma casa, um carro e um emprego.
Uma esposa submissa, uma filha linda e uma mãe zelosa.
Vem aqui que eu te ensino a crescer e ser igual a mim.
Assim, você nunca mais sentirá medo, será respeitado pela sociedade e por seus familiares e visto por todos como um homem bom, forte e virtuoso.
Vem, menino... que eu entendo seu medo.
Também já fui menino...
Também já me escondi.
Mas, veja o homem feliz que me tornei.
Hoje, eu sei de todas as coisas. Conheço toda a história humana, toda ciência e toda teoria.
Sou culto, criativo e eficiente.
Domino todas as artes e as pessoas se calam para me ouvir.
Vem que eu te ensino toda sua vida...
Pare! Homem não deve chorar assim... Alguém pode ver.
Não se preocupe, vou lhe ensinar qual é o melhor lugar para as lágrimas.
Veja o paraíso que lhe apresento: uma vida linda...
Ensaiada, decorada e só depois vivida.
Sem sobressaltos nem paixões dolorosas.
Sem imprevistos nem improvisos.
Vem, menino...
Que aqui o ar nunca falta e nossas máscaras são bem bonitas.
Nosso teatro é comovente e nossos valores são universais.”


O que ninguém sabia
É que era isso
Que o menino mais temia.


Tela de Ray Caesar.

quinta-feira, 5 de março de 2009

(Pre)texto


Eis o meu aparato técnico: uma garrafa de vinho, um maço de cigarros e a lembrança fiel da cena desta tarde.
Absolutamente sozinha e disposta à só abandonar os cigarros e a garrafa depois que tudo estiver definitivamente claro pra mim.
O que aconteceu, como aconteceu e por que aconteceu.
Até parece pretexto pra me embriagar sozinha!
Mas, é uma meta. Um objetivo coerente e de fácil acesso.
É só eu ficar aqui o tempo necessário e pensar bastante. Ver e rever aquela cena quantas vezes for preciso e chegar a uma conclusão.
Vamos lá:
Você bateu a porta com força como sempre, mas dessa vez eu me assustei. Há tempos você não aparecia...
Pensei que meu coração estivesse acelerado por causa da sua presença, mas logo constatei que era por conta do susto.
Fui muito educada e gentil, igualzinho quando aquele técnico da vigilância sanitária aparece para pegar uns relatórios.
Aquele silêncio foi constrangedor, eu sei... Mas, é que eu estava tentando me lembrar de todas as palavras que eu queria tanto te falar, esperei tanto pra gritar, ensaiei tanto pra te dar...
Não consegui me lembrar! Que coisa estranha...
O jeito foi conversar sobre tudo e sobre nada...
O que era aquilo acariciando meus cabelos sarcasticamente?
Era a nossa apatia...
E a poesia, onde estava?
Morta.
Morta?
Não! Não pode ser... Quem a matou?
Você ou eu?
Isso não importa.
Está morta a pobrezinha e a culpa é nossa.
Já era hora dela morrer.
Foi por isso que eu me assustei quando você chegou batendo a porta. Foi por isso que eu nem me lembrei das palavras que passei um mês escolhendo pra você.
Foi por isso que eu quase te entreguei os relatórios e desejei um bom final de semana quando você ia saindo.
E eu não me senti feliz nem triste por vê-lo...
Não senti raiva de você, nem pena, nem carinho...
Meu coração simplesmente se recusou a participar daquela cena.
E eu não senti nada.
É isso! A poesia está morta.
Essa é a conclusão de tudo...
Será que agora eu devo chorar e guardar luto?
Não sinto vontade...
Devo respirar aliviada?
Ligar para todos os meus amigos e dizer que estou curada?
Também não é assim que me sinto...
Não sinto nada.
E alcancei a minha meta.
Mas, este vinho está tão bom...
Acho que convém eu pensar mais um pouco na cena e fumar mais um cigarro...
Quem sabe eu ainda verei você no fundo do copo?

...

(A outra metade da garrafa e uma carteira de cigarros mais tarde):

Não tem mais vinho nem cigarros...
Sabe quem eu vejo no fundo do copo?
Ninguém.
Uma garrafa é muita coisa pra mim. Estou totalmente embriagada, mal consigo ver o copo...
Vou pra cama...
Minha cabeça está pesada e minhas pernas estão moles...
Preciso parar de beber.
Não há ninguém no fundo do copo.
A poesia está finalmente morta.
E, se você quiser aparecer vez ou outra, vê se pára de bater assim a porta...

Porque eu quase morro de susto, porra!


PS: Ilustração de Chiara Bautista.