terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O que falta é espaço


Ela olha desconsolada para a bagunça do seu quarto. Livros, sapatos, CDs, bolsas e sentimentos inadequados espalhados pelo chão. E, no final das contas, tudo isso desaparece. Menos os sentimentos inadequados. Ela precisa arrumar um lugar onde guardar tantas coisas inúteis e os livros e CDs (que são infinitamente preciosos). Precisa descobrir um canto pra estes "estranhos objetos" (os sentimentos inadequados) porque tentou deixá-los como que por descuido num quarto de hotel barato, mas olhou pra trás no último minuto, enfiou tudo na mochila e trouxe de volta tanto peso. Tentou levá-los para terras de colonização alemã e dá-los a um capilé, mas lá a questão do espaço é ainda mais complicada porque aquela gente está cheia de amores, compromissos, responsabilidades e pessoas. Definitivamente, lá não cabe. Gostaria de doar um pouco dos livros à biblioteca municipal, mas é incapaz de fazer isso pois gosta demais deles. Precisa comprar uma cômoda e organizar tudo pra ver se encontra sua carteirinha de pós-graduanda que tem que estar em algum lugar por aqui. Se não precisasse dessa merda, provavelmente estaria em todos os lugares por onde ela passa. Gostaria de saber o que fazer com tudo isso e enterrar a má notícia natalina que acabou por se quebrar perto da cama e agora fica espalhando um pó meio deprimente por todo lado. Tem 23 anos e ainda não aprendeu a guardar nada. Tem 23 anos e ainda não aprendeu que não se deve cultivar sentimentos inadequados para os quais não existe espaço na face da terra.


Tela de Edward Hopper

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

É Natal


Eu vos agradeço por vossa mediocridade.
Sim, pobreza é um defeito genético e o-por-tu-nis-mo é uma virtude aqui... no país das maravilhas. Parabéns pelo seu esforço e pelas oportunidades que forjou neste mundo tão belo e azul.
Mas, é Natal, sejamos bons e solidários com aquele sujeitinho acomodado que pede uma moeda no sinal. Tenhamos pena das criancinhas que têm fome à noite porque seus pais não quiseram dar-lhes uma vida digna ou não puderam porque são geneticamente des-pre-vi-le-gi-a-dos. Tudo isso é mais indigesto do que esses assuntos microscópicos pra mim.
Porém, eu vos agradeço por este texto e por esta náusea que me sobe a garganta e por este gosto amargo de repulsa por todo este pensamento pequeno-burguês que, além de tudo, se legitima em Deus.
Nosso Deus todo Poderoso que tem um plano para cada um de nós, que fez o mundo assim: com alguns ricos, um montão de pobres e a classe média no meio fazendo o paraíso feder um pouco mais. Que a cerveja nunca nos falte, que a inteligência não nos abandone, que nosso status nunca caia, que nossos carros nunca sejam roubados, que as etiquetas nunca passem despercebidas, que saibamos sempre achar o caminho de volta, pra fora desse mar de exclusão e misérias que nos diverte como um espetáculo circense.
Que nosso Deus Todo Poderoso nunca nos permita errar a nossa parte do texto.
Dai-vos graças por vosso QI!
Louvai o sistema capitalista e suas toneladas de oportunidades.
Perdoai os indigentes e as crianças esfaimadas. Eles sabem o que fazem sim, mas... sejamos todos misericordiosos a semelhança de nosso Pai.
A justiça divina se faz em nossos corações para que possamos viver em harmonia neste mundo de paz e igualdade.
[Desculpem, eu sou contra a harmonia... Prefiro o conflito, o confronto, a revolução, a transformação. Se Jesus Cristo não fosse um revolucionário teria sido complicado criar toda aquela confusão que resultou na maior prova do amor de Deus pela humanidade, lembram-se? Não tem importância. Outra cerveja, por favor!]
Isso não estava no script.
Sorria e seja cordial, meu bem. É uma luta tão inglória quanto todas as outras que você travou ao longo dos seus 23 anos de vida. A única diferença é que aqui você pode se divertir e isso vai te render um texto razoável amanhã.
Eu sei que isso é terrorismo e, na verdade, meus senhores, essa idéia me agrada bastante.
Este confronto de idéias é o que mais me excita. Isso é a total ausência de harmonia e vejam o quanto é bom. Essas pausas constrangidas na sua fala representam o caos que você teme, pois te põe vulnerável e te expõe ao mundo desconhecido de pensamentos diversos, alheios, extremos, opostos, avessos.
Ah! Como somos imaturos se achamos que aquilo em que acreditamos é uma verdade absoluta, imutável, gravada em pedra feito mandamentos mortos de um deus xiita.
Que Deus horrível nós criamos para esconder nossas fraquezas... Isso sim é lamentável. Deus deve estar puto com a imagem que andamos criando Dele por aqui.
[Desculpem de novo... Sei que eu não deveria dizer que Deus está "puto". Acho que este termo não é adequado para eu me referir ao estado de espírito do Todo Poderoso].
Ah! Eu vivo fugindo do script.
Nem com toda fé do mundo eu consigo acertar a minha parte do texto!
Oh, Pai Todo Poderoso – fazei-me educada, cordial e dai-me discernimento para acertar o texto nesta peça tragicômica onde eu represento um delicado fantoche com mãos sedosas, sorrisos meigos, olhares lânguidos e pretensões terroristas.
Amém.


PS: E que a trilha sonora seja razoável.
Amém de novo.


Feliz Natal pra todo mundo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Processo inflamatório


E essa dor que não passa.
Nem meus pés eu consigo lavar.
Não acredito que sou capaz de permitir que a minha cabeça faça isso com o meu corpo.
Mente e corpo doentes e estagnados.
Andar dói. Abaixar dói, levantar, sentar, ficar em pé... Tudo e qualquer coisa faz doer.
Menos deitada fitando o teto do quarto e cantando sozinha todo o repertório da Legião Urbana enquanto a Chica arranha a porta querendo fazer um dueto.
Nada está bem. Tudo está errado.
Como é mesmo o finalzinho de Eduardo e Mônica?
O teto branquinho. O barulho do ventilador. As pernas esticadas e o corpo reto.
Assim, quase não dói.
Sede. A geladeira tão longe. E essa dor miserável voltando ao me levantar.
Mente. Corpo. Nada funciona bem.
Antes eu conseguia lavar meus pés e me lembrava da letra inteira da música.
Mais uma injeção?
Ortopedista. Neuro. Raio-X. Qualquer coisa. Eu só queria que parasse de doer.
Não é nada. Foi de lavar aqueles tapetes naquele tanque meio baixo.
Foram essas madrugadas, esses pesadelos, essa tensão. Fórum, café da manhã, almoço. Como assim, sem frutas? Comissão de alimentação. Precisa de CI para utilizar a copa do HU! É brincadeira...
Vamos rever nossos objetivos aqui.
Vamos rever tudo: projetos, prioridades, caminhos, escolhas, sentimentos, a cor do teto, dos cabelos, do lago, da vida...
Ah, Renato Russo, “há tempos são os jovens que adoecem.”
Esses nossos sorrisos enferrujados, nossas lágrimas sem brilho, nossos olhares pétreos, nosso desdém por nós mesmos.
Estamos todos fragilizados, por isso, vamos nos abraçar.
Melhor não. Preciso ficar deitada até sarar.
Cinco chamadas não atendidas.
Inútil retornar.
“Você está melhor?”
“Não. Estou péssima e não consigo nem lavar meus pés.
Estou revendo quase tudo, já que mal consigo andar.
Não se preocupe, é um mal passageiro.
Já, mãe... injeção e repouso.
Tô cantando Legião Urbana e olhando pro teto.
Posso estar enlouquecendo.
Deitada não dói.
É só um processo inflamatório.
Não nos preocupemos.
Vai passar.
Logo desinflama, mãe.”
O corpo e a mente.

domingo, 29 de novembro de 2009

Salmo do ACS


O ACS é o meu pastor,
e a guia não me faltará.
ACS suado que estais na rua,
de casa em casa para a saúde levar.
Venha a nós suas visitas.
Seja feita a nossa alegria, assim na segunda
como na sexta.
As orientações de cada dia nos daí hoje.
Perdoai a nossa ignorância.
Assim como nós perdoamos a quem vós
não tenhais visitado.
E não nos deixeis cair em descaso.
E livrai-nos do SUS.
Amém.


Adriana Rodrigues (ACS).

A escrita criativa e crítica de alguém que tem muito a dizer.

Uma categoria profissional que merece ouvidos e atua no silêncio.

Uma oração pela melhoria das condições de trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O pão nosso de cada dia


O milagre da MULTIplicação. Sete pães para irmãos que se multiplicam no milagre da aprendizagem. Na campanha da salvação... Sete pães que apodrecem nas repartições públicas. Nos cofres da Nação... Pães de hipocrisia, de afastamento, de negação. O trigo da autocracia burguesa, do ranço paternalista, da garçonete soberba... Da segregação. Pães de política suja, de mediocridades provincianas, de interesses avessos... De exploração. O pão do trabalhador alienado, do usuário esfaimado, do profissional robotizado... O pão da dominação.
A fome da equipe MULTI não se mata com este pão.
A equipe multi come e vomita indignação. Com seus jalecos de fuxico, seus pontos de dor, jamanta, sono e este verão... A equipe multi mastiga o pão amargo da resignação. Enquanto sonha com o milagre da multiplicação. Do trigo da liberdade. Do pão da expressão. Que sacia a tal fome de democratização. Da MULTIplicação do pão e da palavra...
No milagre da insurreição.

domingo, 15 de novembro de 2009

A vida segue


De novo esta necessidade incontida de escrever sobre jantares, olhares, relações, medos, incertezas...
De novo esta angústia e o antigo sono amigo se afastando no meio da noite, dando adeus e me deixando sozinha de olhos abertos na escuridão.
Parece que a vida é isso mesmo, este eterno festival de incertezas, desencontros, solidões...
Gostei muitíssimo de ver aquele sorriso na foto - alguém tem que estar bem nesta história toda e eu juro que prefiro que seja você.
Eu sabia que comigo seria diferente, que estes finais de semana chegariam carregando oito toneladas de preocupação e todo tipo de pensamentos inadequados para quem precisa viver dia após dia com tantas lembranças e ainda seguir em frente.
O lago está marrom, mas ainda assim ele é bonito e me faz lembrar de você, do seu sorriso, da sua voz, da sua vida que me deixa sem sono aqui deste lado do mundo.
Tão longe eu estou de mim...
E esta chuva calma, estes trovões que percorrem as distâncias, o crepúsculo do dia impregnado de saudade e de medo do que pode se romper, do que pode renascer, do que pode se perder para sempre.
Mais um dia que morre longe...
Mais uma esperança que desaparece com a luz...
Mais uma lágrima que escorre furtiva enquanto tento me convencer de que está tudo bem mesmo que você não atenda o telefone.
Sua garganta está melhor, você não está bebendo demais, a solidão não te angustia, as músicas são boas, o tempo é de descobertas, a vida segue...
O lago está da cor da terra em contraste com o verde escuro do jardim nesta hora do dia...
A família se reúne e fala sobre nossos erros, dão suas opiniões isentas de culpa ou responsabilidade, tiram conclusões de quem somos a partir desta última semana de revoluções inglórias...
Nem nós sabemos.
Ninguém sabe.
Só dá pra saber o que se passa aqui dentro e sobre isso não dá pra concluir nada.
Aceito suas decisões com a passividade que não tenho, mas invento pra você...
Invento tudo pra nós dois enquanto o dia morre longe...
Enquanto a vida segue tão longe de mim.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Esquecimento


Estou ouvindo uma música qualquer quando ele aparece.
Distraída. E, de repente, percebo aquele bichinho no canto do armário. Saldo-o.
Responde-me com um sorriso tímido...
Tenho a sensação de que já o conheço.
- Quem é você? – pergunto despretensiosamente.
- Sou um pobre animal abandonado. Quer me acolher?
- De onde você veio?
- Não me lembro.
- Tenho a sensação de que já o conheço.
- Nunca estive aqui.
- Mostre-me os dentes. – peço desconfiada.
- Não posso.
- Por quê?
- Porque dói.
Olho-o por alguns segundos. Ele fica incomodado, mas me encara também.
Tem um ar falso de inocência.
Não é pavoroso, mas também não tem aparência afável.
Não é bonito nem feio.
Às vezes parece carente e esfaimado.
Outrora se comporta com uma insolência assustadora.
Continuo desconfiada. Tenho uma sensação estranha de que aquele bichinho não é boa companhia...
E ele vai ficando. Pede-me que o alimente...
Está realmente faminto.
Segue-me em todo canto. Vela meu sono, mexe nos meus sonhos, altera meu apetite, conversa com meu estômago, fecha meus olhos, muda os móveis de lugar, esconde meus óculos, acaba com meu cigarro, sacode meu humor, mata meus conceitos, ri das minhas lágrimas, vasculha minhas gavetas, compõe sambas, me chama de querida...
Agora ele faz tudo que quer. Parece dono desta casa e da minha vida.
E eu já o conhecia só que não me lembro de onde.
Mas, se ele me mostrar os dentes eu tenho certeza que consigo lembrar.

Ilustração de Chiara Bautista

domingo, 4 de outubro de 2009

Equipe Multi


É que lá não tem água potável e o banheiro é um negócio complicado. Disputadíssimo. E serve até de estacionamento pra uma monareta de mil anos. Isso que dá trabalhar na saúde pública. É cada coisa que a gente vê. E ainda por cima em equipe multi. Multi. Multi... tudo isso e nada ao mesmo tempo. Preciso pensar em um tema pra TCC e comprar algumas coisas pra viagem. Viajar. Viajar. Viajar. Tá bom, eu vou fazer academia de manhã pra não precisar deixar de ir a Keiko no fim da tarde. Porra. Eu tenho o direito de beber todos os dias porque trabalho na saúde pública e moro no fundo de uma caverna no meio do circo dos horrores e sei que os ratos estão pelos corredores. Você também iria beber todas as tardes conversando com hippies baianos, capoeiristas, cães da rua, amigas desaforentas e toda a legião de seres fantásticos que habita aquele bar deliciosamente sórdido onde os fregueses podem ser açoitados por mijar na calçada. Um dia alguém ainda vai fumar aquele japonês e eu quero muito estar presente. Pobrezinha. Além de assistente social foi trabalhar na saúde pública. E ainda por cima em equipe multi. Multi. Multi... quinze mil oitocentos e quarenta e sete maluquices por dia. Taras, cleptomania, psicopatia, narcolepsia, sexo grupal, blastos revoltados, terreiros de umbanda, laqueaduras, fígados rejeitados, uniões instáveis, orgias gregas, hipocondria e gripe H1N1. Tudo que a gente leva pra dentro da Keiko no fim da tarde e enfia goela abaixo com um gole da skol mais gelada do mundo entre um pacote e outro de torcida. Não tem estômago que aguente. Nem blastos. É muita coisa pra um portfólio. É muita coisa pra quem precisa dormir pelo menos dez horas por dia... Não tem meditação que dê jeito. Nem ioga, nem box nem porra nenhuma de exercício físico nem acupuntura nem viagem nem bolsa nem nada. O jeito é ir levando entre uma biópsia de medula e um porre. Entre uma laqueadura e uma coxinha de frango. Entre a vacina e a G.O. O jeito é ir pra academia de manhã ouvindo qualquer coisa que me faça acreditar. O jeito é viajar de avião porque de ônibus leva umas quatorze horas. E olha que sessenta das minhas horas semanais pertencem única e exclusivamente à RMSF. E eu fiz isso voluntariamente, ninguém me obrigou a nada. Dois e trezentos é pouco, né não, Regi? Haja blastos e estômago e hippie neste mundo. Cazuza nem existe mais, aceite. Agora ele toca gaita e faz fisioterapia e natação e nada de Keiko. Pois é... Perdemos essa. Cazuza morreu. Mas, nem tudo tá perdido: a Jú tá indo pra lá com mais frequencia no auge dos seus setenta e oito anos. Isso sim é que é exemplo de vida. Nem que for pra chorar dor de amor e as neoplasias da vida... o bar a gente não abandona. Senão, o que resta? Comer coxinha e beber tubaína de limão na padaria que agora nem toldo tem... o vento levou. Daqui uns dias o terremoto vem também e não sobra nem a lembrança de Ibiporã. Aquela porra me lembra Macondo. E a gente pensando que era a Jamanta, hein Equipe? Lá a destruição é em massa mesmo. Vem tufão e fode com a cidade inteira. E gripe. E a equipe permanece. A equipe tem o perfil de Ibiporã. Pede uma pizza com borda recheada e todo mundo se diverte com treze quilos de catupirí por pouco não vomitados por conta dos testículos de um ser grande que fala até pelos cotovelos. E rouba o MEU pedaço de tomate seco. Pelo menos todo mundo ainda tem mamilos, né não Bruna? Tenho um medo da porra. A coisa toda é o perfil deste bando de lunáticos? Será que alguém explica? Diz aí, Regina Gil. Pelo menos não tem mais primeira-dama do narcotráfico local. Aquilo já tava perdendo a graça e só quem vive com a cabeça lá em Campo Mourão é que demorou um pouco mais pra perceber isso. Nem o Angeli conseguiria criar um enredo tão pitoresco. É a porra do perfil, né não Equipe? Todo mundo militante do SUS apesar de Jamanta, Tufão, Terremoto, Blastos, Exú da Bicicletinha e o diabo... Sempre uma aventura!
A gente se vê amanhã... lá em Ibiporã.
Segunda-feira é dia de Keiko, né não?

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Mundo


Havia um Sujeito Levemente Esverdeado na esquina, uma Senhora Muito Magra olhando para as mãos no ponto do ônibus e uma Garota com uma grande mochila roxa encostada no muro com uma pequena Salamandra no ombro. As Formigas passeavam tranquilamente pelo meio fio e o Vento soprava calmo, indiferente, impertinente tentando irritar a Salamandra.
Havia um muro azul com frases bíblicas e uma Freira que andava apressada em frente a um ferro velho com seu hábito pesado escorrendo asco e virtude, roçando o chão poeirento e as Formigas despreocupadas.
A Salamandra olhou demoradamente para a Freira com expressão de divertimento. O Sujeito Levemente Esverdeado acendeu um cigarro e ofereceu à Salamandra.
Havia um Sujeito Levemente Esverdeado e uma Salamandra fumando na esquina enquanto a Senhora Muito Magra que olhava para as mãos rezava baixinho para que os Anjos parassem de beber e fazer barulho nas escadas à noite.
O Sol fazia buracos na superfície do dia e a Garota repreendeu a Salamandra por fumar.
O Tempo tocava piano para acalmar o Sol, os Pássaros voavam fatigados e as Flores sofriam de um leve transtorno mental característico das tardes quentes demais.
Os Carros corriam, as Mulheres choravam, os Homens vagavam e as Crianças fingiam que não sabiam de nada voltando escandalosamente das escolas enfadonhas com seus uniformes suados e suas mochilas grandes demais e seus cabelos despenteados.
Um Hippie pediu um cigarro à Salamandra que ficou desconcertada e olhou para o Sujeito Levemente Esverdeado que deu um cigarro ao Hippie e depois comprou uma pulseira de mandalas em couro.
As Formigas continuavam sua marcha descontraída e a Senhora que olhava as mãos levantou a cabeça e pediu ao Hippie um cigarro.
Ele disse que só tinha maconha.
A Freira parou no ponto do ônibus e olhou com dureza para a Salamandra, para o Hippie e para o Sujeito Levemente Esverdeado.
No jardim de uma mansão do outro lado da rua uma Mulher Lânguida chorava e dizia: “Oh, meu umbigo, meu umbigo...” enquanto seus Filhos cresciam alheios às lágrimas e ao umbigo da mãe ouvindo as histórias das Formigas que moravam no jardim e queriam fazer uma parceria com os Tatus para criar um partido anarquista ultra radical. Os Tatus ficaram preocupados e disseram as Crianças que as Formigas estavam em crise existencial.
A Salamandra saltou do ombro da Garota e foi pedir maconha ao Hippie, que sorriu para a Freira e saldou as Formigas Anarquistas.
Resolvi ir embora e, de longe, eu ainda ouvia a Mulher Lânguida chorar e repetir: “Oh, meu umbigo, meu umbigo, meu umbigo...”

sábado, 12 de setembro de 2009

Sobre Bruxas e Anjos


Era uma vez (outra vez...) uma pequena Bruxa chamada Roberta. Pequena, porém muito astuta - presidente do sindicato das bruxas, militante da desburocratização da maldade e da socialização da magia.
E também tinha uma Princesa neste conto, mas ela tinha umas taras estranhas por Anfíbios... nem vamos falar sobre ela.
A Bruxa Roberta vivia pela causa da bruxaria e sofria de insônia, até que, em um dia cinza no qual procurava um advogado para articular a instituição de um piso salarial para as bruxas, atropelou uma criatura descabelada que atravessava a rua distraidamente para ir à padaria. Roberta percebeu que aquele ser não deveria ser humano, pois era descabelado demais... Desceu do carro desconfiada, olhou o sujeito caído no asfalto e confirmou sua suspeita:
- Eis que eu atropelei um anjo!!! - gritou vitoriosa
- Ajude-me, por favor - sussurrou o Anjo Descabelado com o cotovelo todo estourado.
- Ajudo não, sou Bruxa. Ajudar não é meu departamento.
- Esqueça isso. Sou Anjo, mas vou foder com a sua vida se não me ajudar a me levantar. E garanto que foder com a vida dos outros também não é meu departamento.
- Você não consegue se levantar, e eu tenho um carro... vou acabar de matá-lo.
Então a Bruxa Roberta entrou calmamente no carro e acelerou para acabar de matar o Anjo Descabelado, mas as Fadinhas Desaforentas apareceram e levaram o tal Anjo, que ainda teve a pachorra de fazer um gesto obsceno para a Bruxa enquanto era carregado por aquela revoada de fadas (des)encantadas.
Roberta ficou furiosa, mas se lembrou que tinha outros assuntos para tratar e foi atrás do advogado. Ao sair do Sindicato, encontrou o Anjo Descabelado empoleirado sobre o capô de seu carro, olhando-a de forma petulante e desafiadora.
- Tem três coisas que eu gostaria de te perguntar: Por que é que anjo é tão descabelado, tão imbecil e por que cagou no capô do meu carro?
- Imbecis nós não somos, e nossos cabelos são assim porque nós voamos! Não dá pra ter cabelos arrumadinhos – isso só em filme. E eu não caguei aqui, foi uma pomba!
- E você é o que?
- Eu sou um Anjo!!
- Pra mim é tudo a mesma coisa. E agora me dá licença, porque eu tenho ojeriza do barulho das suas asas.
E a Bruxa Roberta foi embora, deixando o Anjo Descabelado empoleirado na mureta do estacionamento com aquele sorrisinho insuportável de quem não vai desistir tão cedo.
Sim... isso é um conto de fadas, e este Anjo Descabelado está apaixonado pela Bruxa Roberta.
Afinal, até mesmo as bruxas precisam de um anjo.
Naquela noite, o Anjo Descabelado entrou no quarto da Bruxa Roberta silenciosamente enquanto ela dormia e contou-lhe histórias de anjos velhos, diabinhos presos em garrafas e japoneses capitalistas que cobram a parte pelos copinhos enquanto ela sorria sentindo a fala cantada do Anjo acariciar seu sono. E, desde esta noite, todos viveram felizes para sempre...
A Bruxa (que nunca mais sofreu de insônia), o Anjo (que continuou apaixonado pela Bruxa apesar de todos os palavrões, discursos políticos e feitiços estapafúrdios), as Fadinhas Desaforentas (que também criaram um sindicato a exemplo das bruxas), a Princesa Pervertida (que casou com um Sapo chamado Eusébio) e até os Anfíbios (que ficaram livres dos assédios da Princesa).
Era uma vez uma Bruxa chamada Roberta e um Anjo Descabelado...

PS: Juro que este é o último. E o dedico à Roberta Figueiredo.

sábado, 29 de agosto de 2009

Era uma vez...


Uma linda princesa cheia de desamor, um rei alcoolista e uma bruxa pianista. Órfãos bem resolvidos e fãs do Sílvio Santos em um reino chamado Delânia.
Um dia a princesa cheia de desamor começou a matar os órfãos afogados, queimados e/ou envenenados. Todos sabiam, não há mistério no nosso [des]conto de fadas.
Onde estão as fadas?
Fazem aula de piano com a bruxa, que deixou a maldade por conta da princesa, do rei e de toda a côrte e foi dar aulas de piano grátis para quem não podia pagar. Foi intimada a comparecer na delegacia de Delânia por abandonar seu cargo milenar e alegou de forma petulante que não gostava de concorrência.
Abandonou a profissão - de bruxa só carrega o nome, as roupas e o caldeirão.
Então um policial chamado Juca encontrou os corpos de mais dois órfãos, inchados e azuis no fundo do romântico lago onde o rei costumava cantarolar as músicas do Aerosmith em suas noites de boemia. Foi pedir à bruxa que tivesse uma conversa com a princesa, que resolvesse a situação e retomasse as rédeas da maldade. A bruxa fez cara de desinteressada, mas foi. Voltou dizendo que a princesa estava irredutível.
As fadas estavam esperando impacientes pela aula de piano e falavam sobre Ludovico Einaudi com euforia quando a bruxa chegou apressada dizendo que a princesa havia ficado horrível com aquela progressiva nos cabelos - sempre gostou de cachos.
As fadas começaram a fazer perguntas e a bruxa contou sobre os assassinatos. Ficaram chocadas, pois não viam televisão então eram as únicas que não conheciam as práticas homicidas da princesa. Resolveram interferir:
- Vamos fazer um espetáculo de piano e convidaremos todos os órfãos, depois os alertaremos e tentaremos fazer com que fujam para outro reino bem, bem distante.
A princesa soube da festa e resolveu que era uma ótima oportunidade de matar todos os órfãos. Colocou cianeto na cerveja e matou os órfãos, as fadas, a bruxa e até Ludovico Einaudi, que era convidado especial.
Por sorte o rei havia bebido três litros de Jack Daniels naquela tarde e dormiu sentado no vaso quando ia tomar banho para ir a festa.
Juca encontrou a princesa jogando os corpos no lago.
- Porra, princesa. Já estão todos mortos, pra que jogar no lago?
- Eu matei! Faço o que quiser com os corpos.
- Tem que parar com essa mania de matar as pessoas. Princesa tem que ser meiga, delicada, medrosa e amar todo mundo.
A princesa parou repentinamente com o corpo de um órfão moreno e caolho nos braços e olhou para o Juca como se ele fosse o próximo a ser atirado no rio. Soltou o corpo do órfão moreno e caolho no chão e foi pra cima do Juca. A bruxa, que se fingia de morta, deu um pulo e gritou com voz de bruxa:
- Pode parar princesa! Já chega dessa palhaçada. Matar o Juca já é demais.
A princesa ficou puta de raiva e disse que a bruxa deveria estar morta.
- Onde já se viu bruxa morrer com cianeto! - respondeu com as mãos na cintura.
Então, a bruxa derrubou a princesa no chão, sentou-se sobre suas pernas e agarrou seu pescoço. Bruxa profissional e experiente, em poucos minutos enforcou a princesa e jogou o corpo no lago.
Juca se apaixonou pela bruxa e a pediu em casamento. Ela o questionou sobre assuntos políticos e sobre as motivações que o levaram a ser policial. Deve ter gostado das respostas, pois aceitou a proposta e os dois teriam vivido eternamente/terrivelmente/tacanhamente/desesperadamente/fantasticamente felizes,
não fosse o rei ter chegado cantando Amazing e amaldiçoado a vida conjugal deles.
The End.

sábado, 25 de julho de 2009

De repente


E de repente o que antes era tão importante já não fazia a menor diferença. Fui me acostumando tanto a você, que já sentia um certo desconforto ao imaginar meus finais de tarde sem a sua companhia e ir ao mercado sem ter você pra me ajudar a encontrar as frutas e os produtos de limpeza.
E de repente a vida foi ficando sem cor, sem amor e sem rancor. Era só o dia a dia, um abraço, sexo, conversar, tentar dormir e depois todas as responsabilidades que chegam com o sol.
E eu nem vi tudo isso acontecer.
Hoje estou me perguntando o tempo todo como foi que chegamos até aqui.
Qual foi o caminho que nos trouxe até este silêncio de cumplicidade quando não há sentimento nenhum que justifique isso?
Não existe nada dentro de nós que sustente esta loucura... Será que você nunca pensa nisso?
Será que eu tenho que aprender a te amar para poder lidar com esta situação ou posso simplesmente pensar em você como alguém que eu quero ter sempre por perto?
Entregar-me á solidão da sua presença parece propício para estes dias de vida corrida, de início de profissão, de descobertas amargas, de mundo frenético.
Você é uma parcela de paz...
Você acabou por se transformar na minha necessidade de silêncio, de contato inexplicável, de loucura calma e talvez até apática.
Lembra-se dos nossos tempos de distância, das ligações noturnas, dos medos e anseios que nos faziam agir como dois imbecis que ensaiavam de forma desastrosa uma pretensiosa paixão?
Lembra-se daquele conto?
Éramos ingênuos e eu não estou querendo dizer que isso era de todo ruim.
Hoje somos este silêncio e você já não pode ver minhas lágrimas. Antes eu tinha coragem de mostrá-las a você... Mas, agora as lágrimas são incoerentes, os sonhos são perecíveis, a cor o amor e o rancor não nos dizem nada e...
De repente, posso lidar perfeitamente com esta situação.
Não nos preocupemos, as suas promessas já não afetam o meu estômago, eu já não espero por você e sua voz será sempre algo bom para eu ouvir de madrugada.
Você viu tudo isso acontecer?


Tela: "Silence" - Henry Fuseli.

terça-feira, 14 de julho de 2009

É simplesmente uma maneira de sobreviver


Como se não fosse necessário ter um anestésico as vezes e como se o som deste piano dissesse algo além dos 900km que separam duas pessoas sobreviventes.
Hoje eu morri mais de uma vez e parece que é sempre a ausência cortando meus pulsos para depois me dizer que nada disso é a morte, e sim a decadência que nós já conhecemos tão bem e que já é hora de parar de chorar para amanhã comer uma fruta pela manhã e caminhar na Avenida Tiradentes ouvindo Coltrane e passar por aquela praça e depois cumprimentar seu pastor belga com a familiaridade de velhos amigos e me alegrar quando ele sorrir pra mim.
Prometo te dizer bom dia com voz isenta, falar trivialidades no caminho para o trabalho com interesse incomum, sorrir para você todas as vezes que me olhar esperando um sorriso de cumplicidade e não ter os olhos sanguíneos de quem suportou as lágrimas sem filmes nem vodca nem cocaína durante um final de semana de dores de estômago, roupa suja e fotos.
Prometo gostar do almoço que você vai preparar para mim... Só não me peça para parar de fumar e escrever textos felizes.
Eu só queria mais um cigarro e algo líquido que fizesse doer um pouco menos.
Prometo não te mostrar os 900km que separam dois sobreviventes nem as marcas da decadência nos meus pulsos ou nos meus olhos sanguíneos.
Prometo não chorar lágrimas sem lembranças.
Prometo não mentir nenhuma mentira além daquelas que você me pedir.
Prometo estar bem e ser apenas uma Assistente Social cansada.
Prometo respirar tranquilamente esta política pública e engolir silenciosamente toda a tristeza que cabe em 900km.
Prometo sobreviver.


Tela de Ray Caesar

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Silêncio


Nós tínhamos uma vida bem tranquila. Pouco tempo juntos em cada dia de cansaço e som e raiva e vitórias ínfimas e cafés amargos e cigarros silenciosos e noites pequenas.
Nós tínhamos uma vida bem cega juntos...
Duas solidões dividindo um espaço pequeno em um ambiente gigantesco habitado pela nossa ausência.
Era pacífico... as músicas foram testemunhas disso.
Era constrangedor... minha cama também sabia.
Era bom... ainda está na minha pele.
Era estranho... estávamos lá.
Os primeiros dias foram difíceis, depois ficou insustentável e em seguida nós paramos de pensar nisso.
Nunca estávamos sozinhos - havia a literatura e o conhaque por (boa) companhia.
Algumas noites dormíamos juntos - outras, estávamos bem demais para isso.
Conversávamos... ou ficávamos em silêncio quando a solidão gritava tão alto que ficava impossível ouvir a voz um do outro.
Viver era algo quase imperceptível.
Contávamos nossos sonhos, observávamos nossos hábitos e vícios impregnados nas paredes e nunca mais pensamos em nada.
Sinais sutis determinavam movimentos, silêncios longos se transformavam em mãos estendidas, tons de voz eram abraços e olhares eram permissões tácitas.
Viver era bem escorregadio.
É sempre igual quando subo as escadas e me preparo para respirar o ar que só nós respiramos e sentir o cheiro que só nós sentimos e observar os hábitos e vícios que só nós impregnamos naquelas paredes.
Era um outro mundo. Uma dimensão à parte da vida que de tão carregadas de nós dois parecia existir só dentro da gente.
Viver era bem agonizante.
Amávamos dolorosamente cada canto e objeto daquele lugar insólito.
Vivíamos letárgicos cada momento sem cor.
Estou subindo as escadas e tudo isso me acompanha em cada degrau e a vizinha me diz "bom dia" como quem vê a cor desbotada dessas lembranças e o gosto de tudo isso se parece bastante com saudade e os cheiros e vícios e hábitos continuam lá, impregnados.
Minha pele sabia.
Só a solidão deixou de gritar.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Poemices


Não sou muito de ler poesias. Mas, alguns poetas me encantam... O Pessoa, por exemplo. E também tem o Poeta Mauro Rocha, que escreve poesias que eu gosto muitíssimo de ler.
Um dos poucos privilégios dessa vida besta que estou levando foi descobrir alguém para ler...
Explico:
Tenho lido a Dani... e as poesias dela também.
São oito horas diárias lendo sua psicologia, sua inteligência, seus sorrisos, sua companhia, suas palavras, seu bom senso, sua criatividade...
E depois, tem mais da Dani para ler.
Depois tem seus Retratos Cores e Silêncios.
Suas poemices...

É muito bom ler alguém que diz tanta poesia o dia todo e escolhe democraticamente o filme da noite e bebe caipira quando a grana tá curta demais para cerveja e sofre junto as dores do Caio todas as manhãs no ônibus...

E é da Dani que vem a poesia que segue, premiada no IV Concurso Literário "Cidade de Maringá" - tema: "Roça", pela Academia de Letras de Maringá.


Lavra (dor) Borboleta no Asfalto


Das mãos calejadas
Do suor do seu rosto
O alimento dos meninos

Dos olhos brilhantes
Das costas arqueadas
O peso do mundo

Na face aflita
Na boca, nos dentes
Os sonhos caídos

Nos ombros pesados,
No sorriso apertado
A árdua vida

Da terra se fez homem
Da pedra se fez firme
Dos caminhos se fez justo

Com suas unhas
Percorre as entranhas da terra

Com seus braços
Devasta os caminhos do mundo

Com seus olhos
Alarga o sol no horizonte

Com seu corpo
Recebe a benção da chuva

O sol renasce em seus olhos
A água brota de sua fronte
A semente nasce em seu peito.


PS: Minha homenagem por seu talento e meu carinho por sua imprescindível companhia nestas nossas (por vezes ingratas) jornadas de trabalho e estudo.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Acupuntura, Woody Allen e algo mais...


O que te afasta das pessoas?
E o que te aproxima delas?
Afinidades, diferenças, ideologias, carência, curiosidade, solidariedade, conveniência, solidão?
Esta vida estranha que vivemos... nem dá pra procurar motivos.
Às vezes a gente simplesmente esbarra em outra vida e pronto.
A partir daí começa uma longa história, ou apenas mais um ombro existencial no seu caminho que te faz pedir desculpas.
Atualmente vivo em uma grande cidade horrível, tenho sementes na orelha para tentar parar de fumar e juro que não vou me embriagar todo final de semana. Também juro que não vou mais cometer o erro imbecil de te ligar e passar por outra situação indigesta.
O que me aproximou de você?
Pra que ligar?
Eu sei que você não está aqui mesmo.
Eu disse que seria assim.
O que te aproximou de mim?
Sinto-me personagem de um filme do Woody Allen e isso é bom.
A coisa toda fica ruim quando eu me sinto personagem de um filme do Kubrick.
Talvez essas sementes me ajudem a parar de fumar e acabem com a minha gastrite e coloquem um fim nesta minha maldita ansiedade.
Mas, não há acupuntura nem nada neste mundo que me afaste destes ombros nos quais esbarro de vez enquando...
Nem ciência que me ensine a não te ligar e sentir meu estômago lutar contra todas as sementes do mundo quando não é a sua voz que eu ouço e me dou conta de que você não está aqui mesmo.
O que me afasta de você?
E eu aqui, tentando estabelecer outras prioridades e nunca mais abrir mão do meu precioso sono para ouvir a tua voz.
E eu aqui...
Tentando parar de fumar.
Mas, o cigarro, caro Caio F., é a única coisa que eu quero ter nas mãos agora.
Amanhã tentaremos com agulhas.
O que te afasta de mim?

sábado, 6 de junho de 2009

O pesadelo


Esta noite acordei com uma sensação estranha. Acendi a luz do quarto e notei ao me olhar no espelho que havia sangue por todo meu corpo.
Assustada, me apressei em descobrir de onde vinha todo aquele sangue. Procurei por baixo do pijama que se colava à minha pele, entre as pernas, na barriga, nas costas... Até que empurrei meus cabelos para trás e pude ver os fios que escorriam incessantemente dos meus ouvidos.
Pensei consternada que as palavras que ouço são realmente muito agressivas para provocar feridas assim.
É que às vezes eu me canso de ser tão perecível.
É que às vezes essas agressões precisam ser expelidas de alguma maneira, mas eu não imaginei que seria uma hemorragia no meio da madrugada.
Sentia o calor dos fios de sangue escorrendo pelas minhas orelhas, sentia o sabor das palavras que ouço descendo pelo meu pescoço, sentia o cansaço das vozes manchadas de sangue e abandono.
Havia muito sangue. A agressão acumulada da semana. O cansaço de todas as vozes do mundo, de todas as discussões improfícuas, de todos os telefonemas ridículos, de todas as saudades inócuas...
Até que os fios de sangue cessaram.
Entendo estes mecanismos.
Às vezes minha mente precisa criar esses pesadelos para curar as feridas da semana.
Isso é o que eu chamo de “mal necessário”.
O pesadelo acabou.
Não há mais sangue.


Tela: "O Pesadelo" (1781), de Henry Fuseli

sábado, 30 de maio de 2009

Sonhos outonais


Não, querida... você não está sozinha. Ouça, alguém respira palavras contidas ao teu lado. Esta sensação deve ser por conta da escuridão e porque você está no olho do furacão, onde o tempo parou e os sons da roda-viva não podem te alcançar.
Não precisa chorar, isso é apenas sono. Sei que você não está suficientemente cansada, mas tente morrer até o dia amanhecer. Não fique procurando a solidão neste teto que está tão longe nem nestes braços que te protegem do frio e de você mesma.
Tente não pensar em nada, querida.
Tente não ouvir o som do que você nem sabe se existe e não sabe o que tem pra te dizer.
Ele está batendo sim, mas isso não tem nada a ver com você.
Lá fora, o mundo continua sua maldade do mesmo jeito e os anjos sentem frio de madrugada por isso se abraçam, tomam mais algumas cervejas e dançam sobre as folhas secas dos sonhos outonais.
Tente morrer até o dia amanhecer e essa sensação vai passar assim que você sentir a luz do furacão invadir a letargia do tempo.
Logo a escuridão vai embora, querida... Sei que é impossível dormir com estas mãos te acariciando assim.
Mas, tente morrer, minha querida... Você está cansada.
E não pense que está sozinha, não duvide do que você está ouvindo bater, tome mais algumas cervejas, abrace para se proteger do frio e de si mesma, esqueça o tempo, as cortinas, a poltrona e o som dos passos na escada.

A luz do dia logo vem.

sábado, 23 de maio de 2009

Pedro Henrique


Tem um menino hospitalizado desde terça-feira por conta de uma pneumonia. Ele tem seis anos e é meu sobrinho.

Ontem eu o abracei e ele se lamentou que a Enfermeira iria novamente furar sua mão para aplicar o soro.

Meu coração doeu tanto que eu descobri o que é amar alguém de verdade.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Longe


Estive tentando sobreviver.
Estive tentando me deixar envolver totalmente pela objetividade e nunca mais escrever.
Estive tentando me sentir segura e confiante mesmo passando os dias em lugares que não conheço com pessoas que não consigo me lembrar dos nomes.
Estive pensando em nunca mais falar com você.
Quase fui digerida pelo mundo real e posso dizer que foi uma experiência bem interessante.
Quase desapareci e isso foi mais interessante ainda.
Quase me apaixonei, mas isso foi só uma bobagem.
Quase me esqueci do que mais gosto em você, mas até no mundo real você aparece.
Quase morri de medo, mas constatei a tempo que o medo não mata ninguém.
Ontem foi um dia péssimo, senti vontade de te abraçar e chorar de raiva até você me acalmar.
Hoje foi um dia bom e eu me lembrei da tua voz, sorri para algumas pessoas, pensei em definir minhas atividades profissionais e enfrentar um grande desafio.
Hoje o medo foi menor.
Amanhã eu não sei...
Amanhã estarei longe novamente e talvez eu me lembre da tua voz.

domingo, 10 de maio de 2009

Sobriedade


Eu sei como você se sente. Também tenho tido dias bem difíceis.
E fico aqui fingindo que é tudo por causa da mudança e essa maldita falta de dinheiro, sendo que tem horas que sinto vontade de te dizer toda a verdade...
Será que assim você se zanga e nunca mais volta? Será que eu finalmente quero nunca mais te ver? Será que este gosto amargo na minha boca é bom ou ruim?
Você não sabe me responder, pois não faz parte dele. Você não faz parte das lembranças que envolvem a minha boca e essa música deprimente que estou ouvindo agora.
Gostaria de dizer baixinho no seu ouvido que você não deve se iludir...
Tome cuidado, eu não sou o que você está pensando.
Se eu te olho assim é porque o momento é bom e o ambiente me agrada.
Se eu seguro a sua mão é porque sei que você é inteligente o suficiente para se manter afastado quando eu resolver te olhar diferente.
Eu fico brincando de ser doce e uma hora as pessoas acabam pensando que sou uma menina boazinha e me transformam numa referência de educação e bons modos. Deus me livre e guarde de uma vida assim...
É que eu não quero nada disso.
Na verdade, eu nem sei o que quero, mas também não me importei quando aquele seu amigo me perguntou que tipo de relacionamento nós temos. Eu apenas fiz questão de não responder desfrutando deste direito porque quem fazia a pergunta não era você.
Não quero mentir e...
Se estou vacilante neste momento é porque tenho muito medo de aceitar que amanhã ou depois você pode me odiar e eu vou saber que cada gota do seu ódio foi cuidadosamente destilada pela minha confusão.
Como vamos lidar com o fato de que você não deve mais segurar minha mão nem acariciar meus cabelos quando nos encontrarmos em alguma festa?
A verdade atual combina demais com a embriaguez, mas amanhã estaremos sóbrios e essas músicas deprimentes estarão me dizendo que este gosto amargo só pode ser tristeza e arrependimento de ter enfiado os pés pelas mãos no meio de uma história que poderia ter sido sempre tão honesta quanto era naquela noite em que eu me assustei com a forma como você me abraçou.
Hoje eu tenho vontade de implorar para que você não me reclame para si. E não porque eu não queira ser sua por algum tempo, mas porque essa história de tempo me deixa sempre muito apreensiva e eu tenho medo que você me faça a mesma pergunta estúpida que aquele seu amigo me fez, pois a noção de tempo e espaço é diferente para nós dois.
Amanhã ou depois você estará embriagado pelo ódio destilado cuidadosamente por mim. Mas, não nos preocupemos com isso hoje... Quando acontecer você já terá me escutado sussurrar diversas vezes no seu ouvido para que tome cuidado e talvez assim eu não me sinta tão culpada nem acredite nas acusações dolorosas que vai me fazer.
Entendo você... Também tenho tido dias difíceis. Talvez em breve eu te diga toda a verdade. Talvez você se zangue e vá embora pra sempre... Eu disse pra você não se iludir.
E eu juro que essa merda toda não é contrapropaganda.
Deve ser só sobriedade.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Insone


Sabe aquele tempo de recomeçar?
De ir embora e deixar metade das suas coisas que por enquanto não dá pra levar?
De abandonar o que era bom e o que era ruim sem saber como se curar?
Sabe aquele tempo de escolher olhar pra frente sem conhecer aquele lugar?
De reconhecer que o que dói, dói mesmo que você já tenha se acostumado a chorar?
O tempo honesto de se livrar do conforto...
O tempo estranho de acreditar...
O tempo estafante das despedidas...
O tempo em que a fraqueza se faz mais forte dizendo que o que já se sabe é melhor por pior que seja suportar.
É tanta vida pra deixar pra lá...
É tanta memória pra perder...
Tantas faltas pra compensar.
E mesmo assim, a fraqueza se faz forte...
E o tempo vai passando...
E eu aqui...
Perdida entre essas correntes...
Sem sono e sem ar.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

NA NATUREZA SELVAGEM


Há quase dois anos me vi com um filme nas mãos sobre o qual não sabia absolutamente nada.
Resolvi vê-lo numa madrugada tranqüila.
Na Natureza Selvagem.
Há tempos não chorava tanto...
Nas cenas finais comecei um processo estúpido de auto-consolação dizendo mentalmente que tudo aquilo era obra de ficção, até que fui boicotada no meu intento pela foto de Chris McCandless, o rapaz que morreu em 1992 de inanição nos confins do Alasca e inspirou o jornalista e alpinista Jon Krakauer a escrever o livro Na Natureza Selvagem que mais tarde levou Sean Penn a fazer o filme homônimo.
Chorei muito tempo depois do fim do filme e fiquei bem uns dois dias de luto pela morte do sujeito que leu Thoreau, Tolstoi e London com o mesmo entusiasmo que eu lera na adolescência.
A triste história do rapaz me causou impressões densas e eu sempre me sentia muito mal ao pensar na forma como ele padeceu seus últimos dias. Ouvia sempre a trilha sonora do filme, li um pouco mais sobre Chris, voltei a ver o filme depois de algum tempo e nunca mais deixei de refletir sobre meus enviesados ideais de solidão contaminada pela imagem daquele menino...
E eis que neste último aniversário recebi o livro de Krakauer de mãos amigas.
Foram dias de tensão em que olhava para o livro sobre a cômoda do quarto – ansiosa por iniciar a leitura e temerosa por saber que a literatura sempre me afeta mais do que filmes e que poderia prever um vale de lágrimas muito maior para a obra de Krakauer.
Enfiei o livro na bolsa para fazer uma viagem de ônibus que me levaria a um compromisso importante. Estava nervosa e uma boa leitura poderia me acalmar.
Não é novidade que eu tenha me esquecido totalmente do compromisso já na primeira página do livro e por vários momentos já nem me dava conta de que estava dentro de um ônibus.
Krakauer não me fez chorar.
O jornalista foi sóbrio, coerente e honesto em seu relato expondo sua admiração e respeito pelo garoto e mostrando a opinião pública a respeito da triste história.
Apesar de também admirar a pureza impetuosa do rapaz, vi a coerência das críticas feitas por norte-americanos com relação aos equívocos, excessos e atitudes arrogantes dele para com a família, a sociedade e a Natureza.
No entanto, ao perambular pela rede em busca de mais informações sobre a história, me deparei com diversos textos expressando as mais diferentes opiniões sobre o caso polêmico.
Criticar ou apontar as falhas nas atitudes de Chris que o levaram à morte por inanição num canto ermo do planeta me parecem posturas naturais de pessoas que se orientam por princípios de prudência e bom senso. Porém, ver críticas as suas motivações, aos seus princípios e conceitos de vida me fez corar de raiva e indignação. Principalmente pelo fato de que tais expressões foram justificadas pela visão peculiar de quem se colocou no lugar dos familiares de Chris e entendeu o sofrimento destes.
Este post é simplesmente para dizer que eu jamais veria a história de Chris com olhos de mãe ou de filha ou de Assistente Social ou qualquer outro “papel” que eu possa assumir nesta vida...
Vejo aquele sorriso inocente e apaixonado com olhos humanos...
Vejo Chris como alguém que viveu de acordo com ideais e princípios legítimos, sinceros e puros...
Vejo Chris como um ser humano complexo e admirável, que cometeu seus erros, mas foi intensamente verdadeiro em sua busca por algo que lhe era importante.
E que fique registrado que eu teria orgulho de um filho com tamanha nobreza... Ao passo que teria sérios conflitos com filhos hipócritas, mesquinhos, frivolamente felizes e sufocados de bens de consumo.
A morte prematura deste rapaz levou sua vida à mídia, despertando opiniões diversas.
Deixo aqui minha admiração e meu respeito por um sujeito que aprendeu mais em 24 anos do que muitas pessoas inteligentes e simpáticas são capazes de aprender em 80.
Chris aprendeu a humildade...
Deixou de acusar e apontar erros alheios nos momentos derradeiros.
Este deveria ser o maior ensinamento dessa história...
O que me entristece – e deve entristecê-lo também – é ver que agora pessoas do mundo todo fazem isso com ele também. Julgam, apontam, acusam, rotulam... aviltam seus ideais em discussões improfícuas e medíocres.
É que o mundo se esqueceu de olhar para fora com olhos humanos...
É que essa sociedade civilizada esqueceu-se de olhar para seus cidadãos com olhos de gente...
Os olhos são sempre de pais, mães, irmãos, vizinhos, professores, advogados, médicos, padres...
Que sociedade é essa? Que tem sempre que nos rotular e julgar nossas fraquezas?
A Natureza Selvagem me parece muito melhor do que a Sociedade Civilizada.
A Natureza me parece muito Civilizada, enquanto a Sociedade me parece cada dia mais Selvagem.
Concordo com Thoreau, Tolstoi, London, Chris...
Entendo-os...
Acredito neles.
E se eu tivesse filhos, os presentearia com A Desobediência Civil e Walden quando completassem 15 anos...
E, ai deles se, depois disso, ousassem julgar os ideais de alguém.

A foto é de Christopher McCandless, encontrada em sua câmera junto com seus restos mortais em 1992 no Alasca.

domingo, 26 de abril de 2009

Confissões


Ajoelhei-me e já comecei a implorar a Deus silenciosamente para que fizesse com que aquela coisa esquisita acabasse logo e que Ele me permitisse sair de dentro daquele cubículo mal iluminado viva e em condições de caminhar.
- Diga como se sente, minha filha...
E eu desatei a falar.
Contei das noites insones, das músicas que ouço milhões de vezes chorando, dos sonhos que tenho de ser feliz pelo menos uma vez por semana, dos efeitos daquele sotaque, da dor que dá aqui, olha... tá vendo? Da raiva e da saudade que sinto, das palavras que escrevo, dos sorrisos que aquela voz me provoca, da falta de ar, dos palavrões, do café e do cigarro.
Daí ele perguntou sobre as possíveis resoluções futuras e sobre o que eu gostaria que acontecesse.
E eu falei, oras... Ele perguntou!
Antes tivesse calado...
- É amor, minha filha! Isso é pecado. Você deve se arrepender e orar em penitência.
Levantei pela primeira vez a cabeça:
- Ah... Deixe de ser ridículo, padre.
Fui embora.
É por essas e outras que abandonei a Igreja.
Diretamente com Deus, eu falo tudo e Ele ouve quietinho. Depois diz que é pra eu me acalmar que logo passa...
Já perguntei várias vezes a Ele:
- Deus, o Senhor tem certeza que não é amor?
Ele sorri e inclina levemente a cabeça para a esquerda... Diz que eu posso ficar tranqüila, se for amor Ele dá um jeito na situação.
E o padre ainda quer que eu cumpra penitência...
Voltei pra Deus e perguntei:
- O Senhor conhece penitência maior do que amar um guitarrista maluco auto-consolável e hipertenso?
Ele sorriu e inclinou a cabeça levemente para a esquerda (gosto muito quando Ele faz isso):
- Esqueça os padres, minha querida. Alguns deles perderam o bom senso há tempos. Se for amor, deixe comigo que eu dou um jeito na situação... E não falemos mais em penitência.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

É que eu não sou muito de me lamuriar...


Mas, aqui... eu perco um pouco esses pudores.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Um tal João


E pra este tempo bom de (re)invenções, de aprender tudo de novo, de apreciar cada migalha boa da vida como se fosse um banquete de redenção ofertado pelos deuses...

E pra este tempo bom de não chorar, de não ouvir e não lembrar...

E pra este tempo bom de dor de amor que vai passar...

Um tal João canta e sorri...

Canções e sorrisos de Chico Buarque no ambiente insólito do Valentino.

A dor de amor até tenta gritar, espernear e tripudiar entre as quatro amigas...

Mas, o que está perto contagia mais.

As letras e as notas do Chico com a voz e o sorriso deste tal João...

A dor de amor perdeu a voz e a inspiração.

Calou-se pra dar voz ao Chico.

Silenciou pra ouvir um tal João.


PS: A foto é deste mesmo tal João, vocalista da banda Matitaperê. Fica registrada a minha admiração pelo músicos que nos presentearam com um verdadeiro espetáculo de talento e simpatia.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Deserção


Sim, camarada... Estou desertando. Na verdade, nós já perdemos esta guerra há muito tempo. É suicídio continuar.
Já não temos armas e nosso corpo já não suporta sustentar o que até nossa memória abandonou.
Você ainda se lembra pelo que lutávamos? Nossa luta é inglória. O mundo condenou nossa ideologia.
Nós nem sabemos mais qual era a nossa causa... A paz? Não seja ingênuo, camarada... A paz não nos quer. Ela tem outras prioridades... Anda muito ocupada...
“Utopia” – você se lembra?
Deixe-me nesta vala, camarada... Está doendo bastante e eu não quero mais me levantar. Quero fechar os olhos e sonhar que nada disso aconteceu. Que nós nunca derramamos sangue e lágrimas... Que os destroços nem existem... Depois contabilizamos os prejuízos, camarada... Depois recolhemos os espólios. Agora, quero ficar aqui nesta vala... Ela é o único leito de um soldado caído. Ela é o descanso para quem a força não existe mais. Ela absorve o sangue que escorre das feridas abertas e agônicas do abandono.
É claro que dói, camarada...
Dói desertar...
Dói abdicar de uma paz que eu tanto busquei.
Mas, não dá pra continuar assim... A dor turvou meu entendimento. Os seus sinais e códigos secretos já não me permitem interpretação. Quando você acena pra que eu continue, penso que sinaliza pra eu recuar. É tudo inviável, até mesmo a comunicação. Eu já não sei mais lutar.
Não há vitória...
Apenas estampidos ao longe que me dizem que não vale mais a pena tentar...
Eu me perdi no meio de tantas batalhas, de tantas noites de vigília, de tantas datas oficiais e sobressaltos e alarmes falsos... Agora, veja o que sou: um soldado caído, ferido, cansado e letárgico... Você se lembra daquela sua letargia? Agora ela é toda minha... Sinto-me exausto e suas mensagens cordialmente impessoais já não me estimulam mais. Estou desistindo desta guerra de merda, ilustre soldado.
Espero que você faça o mesmo antes de se ferir tão gravemente...
Antes de ver em seu corpo as feridas que tenho em mim...
Antes de se transformar num espólio de guerra fatigado de dor no fundo de uma vala...
Sinto-me perdido e às vezes fica difícil diferenciar você, companheiro combatente... do inimigo que silenciosamente me ataca. Eu já nem sei se existe mesmo um inimigo, camarada...
Mas, se há... Deixe-me aos seus desígnios.
Deixe-me descansar nesta vala...
Eu acabo de desertar, nobre camarada.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Cianureto de Potássio

Quando eu era criança tinha muito medo de fantasmas. Meu pai costumava dizer que entre os vivos e os mortos há um abismo intransponível e isso me ajudava bastante.
É por isso que eu decidi que você deve morrer.
Uma dose de cianureto de potássio no seu café e estará tudo resolvido.
Porque nós sabemos que o abismo já existe, meu bem...
O cianureto é só pra garantir que seja intransponível mesmo!

PS: Sim, às vezes eu tenho pensamentos homicidas.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Poeminha obsceno – Para não dizer que não falei de sexo...


Eu sei que os versos abaixo parecem incoerentes com a proposta um tanto pudica deste blog, mas tenho uma explicação para o poeminha “obsceno” que segue: A pessoa que o escreveu.
Colocaria o nome dele em letras garrafais aqui se tivesse autorização pra isso.
Porém, meu poeta preferido é tímido...
Devo dizer que ele tem longos cabelos nos quais eu já fiz tranças, tem o direito legítimo e inalienável de apertar minhas bochechas e é um oásis em meio ao deserto intelectual de uma cidadezinha do norte paranaense.
É uma honra publicar estes versos que me provocam saudade das noites de risadas soltas e dos escritos deste amigo lá na escadinha do CCH enquanto esperávamos o ônibus de volta pra casa...
Com todo meu amor e reverência, apresento:

Falácio D’Altamira

Quando a anca a donzela me vira
Sem saber quem eu sou, nem meu nome,
Eu estoco e sacio a tal fome...
- Sou o Agente Secreto Altamira!

E não falha! É precisa essa mira!
Esse falo, "lá dentro" ele some.
No galope a donzela ele come,
- Sou o Agente Secreto Altamira!

Sempre ereto! Mortal vigilante!
Sobre ti, grande mastro gigante
A Bandeira é que ondula, é que gira!

O meu nome primeiro é Falácio.
Com recato, penetro mais fácil.
-Sou o Agente Secreto Altamira!

Agente Secreto Falácio D'Altamira.


PS: Este blog estará sempre aberto para os escrito obscenos do meu poeta preferido pela qualidade literária e poética dos mesmos, nem que para isto tenhamos que transformá-lo em uma página de conteúdo restrito, pois o crime compensa! E a imagem é sugestão dele: “essa cabeça fálica, de 1536, de Gubbio, Itália. Já foi símbolo de bem estar, de fertilidade e de amuleto contra a inveja (Roma)”.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

07/09/2008


Eu não costumo guardar datas. Algumas é que se guardam em mim.
Algumas que invadem uma manhã qualquer de distração, outras que atormentam o sono, outras simplesmente chegam contrariando as palavras e o meu estômago.
As datas nunca significam nada, a menos que me digam algumas verdades, contem alguma história (in)feliz, marquem algum acontecimento que a memória se recusa a jogar fora...
Eu nasci no dia de um desastre nuclear.
Meus pais não devem se lembrar do acidente de Chernobyl em 86, pois estavam ocupados demais com a criatura que nascia com uma hérnia inguinal encravada na virilha esquerda.
Algumas pessoas não sabem que em 02/08/2008 um rapaz de 19 anos, de Charqueada, morreu na hora depois de colidir com a traseira de um caminhão na rodovia Fausto Santomauro, pois estavam ocupadas demais sendo genuinamente felizes para enlouquecer pouco mais de um mês depois.
Eu não sabia que em 07/09/2008 uma garota asmática com flores tatuadas nos ombros se atirava do sexto andar de um edifício em Praga, porque eu estava ocupada demais sendo genuinamente feliz sem conhecer o prefácio da loucura que já se anunciava pouco mais de um mês antes em um lugar onde eu jamais estivera...
Onde eu estava em 02/08/2008?
Quem você era em 07/09/2008?
Quantas pessoas morreram no dia em que eu nascia?
Quais são as datas guardadas no seu corpo?
E quais delas te contam histórias reais?

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Ofício nº 151079

Eis que um ilustre leitor resolveu entrar na brincadeira e escrever um Ofício em resposta ao que postei aqui no dia 19 de fevereiro de 2009. Reconheço o direito de resposta, por isso também o publico neste espaço. Sem data nem endereço, pois o recebi assim...


A senhora Estrela,

Declaro, senhora Estrela, para os devidos [e até indevidos] fins, que sempre fui péssimo com esses documentos burocráticos... péssimo em todos os sentidos; interpreto-os mal e, diante da possibilidade, ou obrigatoriedade, de repetir tal formulação, escorrego... como aquele nobre cavaleiro que “tropeça publicamente nos tapetes da etiqueta...”
Mas, como o assunto [e o objeto astronomicamente apaixonante que habita por detrás do oficio] é importante, tentarei expor com alguma clareza, que há de capengar aqui ou ali, em razão das emoções, essas meninas serelepes que ficam aqui, pulando, cantando, gritando, fazendo um carnaval das minhas linhas tortas.
Já está confuso... Bem, já que o caso “requer” circunspeção, deixemos que esta humilde frase venha a ser como aqueles homens magros, bem vestidos, que se curvam para anunciar a chegada da “realeza”...
Cada linha do seu oficio feriu-me como uma lança em chamas, ferindo coração e alma a um só tempo...
Já das mais pueris construções sintáticas e semânticas nascia em mim um rio caudaloso e profundo de emoções, que empurrava o barco frágil e rude da razão para o espaço.
Que insultos atrozes eram aqueles: “só porque está mortificado de vergonha por ter batido no peito se dizendo um exemplo de coragem e força...”
A um só tempo via eu o amor e orgulho feridos dentro de mim... E aquela mania de defender-se ainda antes do ataque..., de prever, de resguardar, já estava a muito atuando no meu espírito de menino... Não haverá mais frases em que eu não receba com pedras nas mãos... Aquele estranho circuito, visão, assimilação, sinapse, projeção... Todo protegido por um exército de guardiões insolentes e insolentes...
Que aprenderam desde cedo a suportar as dores em silencio... e a disfarçar o medo.
Que aprenderam desde cedo a “ter a resposta antes mesmo de ouvir a pergunta”.
Que aprenderam a esconder os sentimentos.
Que aprenderam os valores machistas de uma cultura superficial e vazia.
Que “pousaram” e “desposaram” dogmas intrínsecos aos símbolos fabulosos das fadas e de uns falsos demônios...
Que aprenderam a ouvir Não e calar.
Que aprenderam a rastejar 23:59hs para pousar de Deus no derradeiro minuto...
Que aprenderam a estar eternamente ao lado da porta que nunca se abrira...
Que aprenderam a julgar antes de sonhar...
Que aprenderam a temer o erro... e nunca arriscar...
Que aprenderam que tudo é competição, e que não há lugar para perdedores.
E todo o meu eu, então, odiava-a, crucificava-a, senhora Estrela... por expor assim deliberadamente, o maior ultraje a que um homem orgulhoso como eu pode ser submetido: fraquejar!
Expor a maneira como calei, como fiz do meu amor instrumento, bússola e nau...
Expor a maneira como a minha letargia fez de mim um dos mais nobres cúmplices da arte de engolir sapos...
E o mais duro... Ver estampado nas suas frases o brasão da descoberta: Eu era mais um covarde como todos os outros milhares que se disfarçam muito bem por aí...
E isso me deprimiu com uma amargura que o próprio Dostoievski não saberia exprimir...
Odiava-a com todas as minhas forças e, se pudesse, fulminaria todos os seus textos e existência... Extirpava, rasgava, assassinava!
Até que por descuido, algum querubim folgazão primiu alguma tecla sedentária, e que não opôs a mínima resistência...
E esta imagem saltou aos meus olhos...


E toda a “PORRA” do meu orgulho...
Do meu medo...
Da minha vontade de “ser eu mesmo”...
Da minha ganância...
Da minha vaidade,...
Da minha esperança de ser justo...
Da minha insensatez...
Toda a maturação estética...
Toda a puerilidade filosófica...
Toda melodia simplória...
Todas as ondas de um oceano contaminado....
Todas as asas da liberdade outrora encarceradas...
Todas as frustrações reavivadas pela inoportuna consciência...
Todas as tentativas fracassadas...
Todos os “moinhos-de-vento”...
Todas as musas disfarçadas de humanidade...
Todas as mentiras disfarçadas de verdade...
Todas as palavras ocultadas...
Todas as flechas erradas..
Todas as mãos que nunca se tocaram...
Todos os lábios que nunca se beijaram...
Todos os artigos [e ofícios] escritos...
Todos...
Todos...
E tudo dentro de mim...
Ajoelhou-se para contemplar o milagre de um amor...
Que tem capelo...
Que tem óculos...
E que tem tudo que eu não poderia ter...
SEM TER VOCÊ.


O VEREDICTO É VERDADE E DOU FÉ.

ASS: Menino da Estrela.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Na madrugada densa de chuva


Olhou a chuva na luz do poste pensando nela e em tudo que haviam conversado.
Quis ligar para saber como ela se sentia...
Mentira. Queria ligar para dizer a ela como estava se sentindo, pois não conseguia ter qualquer sensação e não contar a ela.
Sentir estava sempre relacionado a ela e aquela chuva torrencial o fazia sentir com mais intensidade.
Não queria olhar para dentro daquele quarto vazio, pois seria igual olhar para dentro de si mesmo e não vê-la sabendo que todos os seus livros e CDs estavam impregnados dela, do cheiro, do sorriso, da voz e da falta que ela faz.
Atravessou o quarto e desceu as escadas.
De repente viu-se na calçada ao pé do poste sentindo a chuva molhar seus cabelos que escorriam acariciando seu rosto.
Sentiu a camisa colando na pele.
Sentiu frio.
Sentiu-se vivo.
As gotas massageavam os músculos tensos de amor dos seus ombros, a dor foi passando e ele decidiu que nunca mais ligaria, nunca mais a veria em livros e CDs, nunca mais... Nunca mais.
Correu os poucos quarteirões que separavam sua casa da dela. Os tênis pesados de chuva, a pele arrepiada de frio e de ansiedade e os músculos tensos de amor.
Gritou seu nome na calçada sem se importar com a hora avançada da madrugada densa...
Ela estava na varanda e não se espantou ao ver o homem que amava naquela madrugada chuvosa...
Abraçou-o e o ouviu dizer que não a queria em livros ou CDs ou dentro de si. Queria-a nos braços, na pele, sob a chuva torrencial...
Iluminada pela luz de um poste na madrugada densa de chuva.

Foto de Roger Rodrigues – o futuro Historiador a quem dedico este humilde texto escrito ao som de True do The Frames.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Cardiopatia


As pessoas atribuem o amor ao coração...
Nem sei por quê! Alguém sabe?
O fato é que sou cardiologicamente imune ao amor.
Mas, como o organismo humano é capaz de se adaptar a (quase) tudo, o meu deu um jeitinho nesta deficiência e transferiu a responsabilidade para um órgão que curiosamente aceitou a missão.
Meu estômago assumiu a administração do departamento sentimental.
É um desastre.
Não estou aqui me queixando... É apenas o depoimento de alguém que vive em conflito com as próprias vísceras.
O estômago não dá conta sozinho, por isso envolve a cabeça e todo o sistema respiratório que, diga-se de passagem, constitui-se de órgãos absolutamente ignorantes no assunto.
Isso aqui virou um pandemônio.
O estômago perdeu o controle e a autoridade.
O sistema respiratório está desesperado.
E a cabeça só faz doer.
Preciso imediatamente de homeopatia...
Ou de você.

sábado, 21 de março de 2009

Heroes


Você sempre me faz chorar.
Principalmente quando passa muito tempo longe.
Sinto-me péssima.
Vem aquela sensação de que você está cada vez mais afastado de mim. É quando sua falta dói...
Tenho aquelas noites degradantes de lágrimas, dezenas de cigarros e músicas melancólicas.
Sempre chego ao trabalho com os olhos inchados e o estômago em frangalhos na manhã seguinte. Dia desses uma amiga perguntou o que me aconteceu e eu disse que fui exposta por muito tempo à música ruim e que sou alérgica.
Às vezes, conto para alguém as coisas que você me diz.
Aí, eu me sinto um pouco melhor.
É por isso que valorizo tanto os amigos: eles fazem tudo parecer mais simples.
Lamentando-me para algumas amigas, contei-lhes sua frase memorável:

“SERÁ QUE PELO MENOS UMA VEZ NA VIDA NAO PODEREI DEIXAR DE
SER O SUPER-HOMEM...
E ESPERAR QUE ALGUEM ME SALVE???”

Foi o suficiente.
Agora tenho vários apelidos por aqui:
Mulher-Maravilha, Tempestade, Electra, She-ra, Xena e até a Sara... aquela do Cavalo de Fogo.
Daí formou-se a cantoria daquela música da abertura com vozes tão desafinadas quanto a da própria mulher que cantava no desenho.
E da Sara pulamos para a Caverna do Dragão, Tom e Jerry, Pica-Pau, Ursinhos Carinhosos, Muppets, Popeye e toda a fauna animada da saudosa infância.
Então, você se perdeu no meio do Mestre dos Magos, do Gonzo, Brutus, Leôncio e mais uma legião de personagens fantásticos...
E as amigas transformaram tudo em algo muito simples:
Nosso amor mal sucedido é apenas uma estória...
E nós dois, apenas personagens iguais a esses de desenhos animados que víamos há muito tempo atrás.

“We can be Heroes
Just for one day”...

terça-feira, 17 de março de 2009

Medo

Descobri que monstros existem sim!
Depois que a delirante infância foge assustada, deixamos de acreditar neles...
Tenho 22 anos, a minha infância já fugiu há algum tempo.
Mas, sei que eles existem e estão por toda parte.
Antes apareciam apenas a noite, na escuridão, em meio ao sono...
Antes eles não tinham cor definida.
Estavam apenas nos pesadelos...
Tinham diversos nomes, eram disformes e petrificados.
Agora são reais.
Vejo-os durante o dia, iluminados pela luz do sol...
De olhos bem abertos...
Usam máscaras e palavras de anjos, são gordos, simples e até simpáticos.
Têm mãos, cabelos e sorrisos...
Carros, casas, nomes, datas e legendas...
Amam, se casam e têm filhos.
Atacam quase sempre os olhos, mas às vezes também atingem o sistema respiratório.
Aprisionam músicos e personagens literários em cavernas frias e escuras.
São muito violentos e odeiam a humanidade.
Um deles atacou meus olhos...
Mostrou-me seu verdadeiro rosto.
Tenho medo de monstros.
Eles estão por toda parte.

Existem monstros de verdade.

Escultura de Jane Alexander.

terça-feira, 10 de março de 2009

Vem...


O garoto está tentando se esconder...
O medo o faz chorar.

“Vem aqui, menino. Eu sei de todas as coisas...
Tenho uma casa, um carro e um emprego.
Uma esposa submissa, uma filha linda e uma mãe zelosa.
Vem aqui que eu te ensino a crescer e ser igual a mim.
Assim, você nunca mais sentirá medo, será respeitado pela sociedade e por seus familiares e visto por todos como um homem bom, forte e virtuoso.
Vem, menino... que eu entendo seu medo.
Também já fui menino...
Também já me escondi.
Mas, veja o homem feliz que me tornei.
Hoje, eu sei de todas as coisas. Conheço toda a história humana, toda ciência e toda teoria.
Sou culto, criativo e eficiente.
Domino todas as artes e as pessoas se calam para me ouvir.
Vem que eu te ensino toda sua vida...
Pare! Homem não deve chorar assim... Alguém pode ver.
Não se preocupe, vou lhe ensinar qual é o melhor lugar para as lágrimas.
Veja o paraíso que lhe apresento: uma vida linda...
Ensaiada, decorada e só depois vivida.
Sem sobressaltos nem paixões dolorosas.
Sem imprevistos nem improvisos.
Vem, menino...
Que aqui o ar nunca falta e nossas máscaras são bem bonitas.
Nosso teatro é comovente e nossos valores são universais.”


O que ninguém sabia
É que era isso
Que o menino mais temia.


Tela de Ray Caesar.

quinta-feira, 5 de março de 2009

(Pre)texto


Eis o meu aparato técnico: uma garrafa de vinho, um maço de cigarros e a lembrança fiel da cena desta tarde.
Absolutamente sozinha e disposta à só abandonar os cigarros e a garrafa depois que tudo estiver definitivamente claro pra mim.
O que aconteceu, como aconteceu e por que aconteceu.
Até parece pretexto pra me embriagar sozinha!
Mas, é uma meta. Um objetivo coerente e de fácil acesso.
É só eu ficar aqui o tempo necessário e pensar bastante. Ver e rever aquela cena quantas vezes for preciso e chegar a uma conclusão.
Vamos lá:
Você bateu a porta com força como sempre, mas dessa vez eu me assustei. Há tempos você não aparecia...
Pensei que meu coração estivesse acelerado por causa da sua presença, mas logo constatei que era por conta do susto.
Fui muito educada e gentil, igualzinho quando aquele técnico da vigilância sanitária aparece para pegar uns relatórios.
Aquele silêncio foi constrangedor, eu sei... Mas, é que eu estava tentando me lembrar de todas as palavras que eu queria tanto te falar, esperei tanto pra gritar, ensaiei tanto pra te dar...
Não consegui me lembrar! Que coisa estranha...
O jeito foi conversar sobre tudo e sobre nada...
O que era aquilo acariciando meus cabelos sarcasticamente?
Era a nossa apatia...
E a poesia, onde estava?
Morta.
Morta?
Não! Não pode ser... Quem a matou?
Você ou eu?
Isso não importa.
Está morta a pobrezinha e a culpa é nossa.
Já era hora dela morrer.
Foi por isso que eu me assustei quando você chegou batendo a porta. Foi por isso que eu nem me lembrei das palavras que passei um mês escolhendo pra você.
Foi por isso que eu quase te entreguei os relatórios e desejei um bom final de semana quando você ia saindo.
E eu não me senti feliz nem triste por vê-lo...
Não senti raiva de você, nem pena, nem carinho...
Meu coração simplesmente se recusou a participar daquela cena.
E eu não senti nada.
É isso! A poesia está morta.
Essa é a conclusão de tudo...
Será que agora eu devo chorar e guardar luto?
Não sinto vontade...
Devo respirar aliviada?
Ligar para todos os meus amigos e dizer que estou curada?
Também não é assim que me sinto...
Não sinto nada.
E alcancei a minha meta.
Mas, este vinho está tão bom...
Acho que convém eu pensar mais um pouco na cena e fumar mais um cigarro...
Quem sabe eu ainda verei você no fundo do copo?

...

(A outra metade da garrafa e uma carteira de cigarros mais tarde):

Não tem mais vinho nem cigarros...
Sabe quem eu vejo no fundo do copo?
Ninguém.
Uma garrafa é muita coisa pra mim. Estou totalmente embriagada, mal consigo ver o copo...
Vou pra cama...
Minha cabeça está pesada e minhas pernas estão moles...
Preciso parar de beber.
Não há ninguém no fundo do copo.
A poesia está finalmente morta.
E, se você quiser aparecer vez ou outra, vê se pára de bater assim a porta...

Porque eu quase morro de susto, porra!


PS: Ilustração de Chiara Bautista.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Scotland


Definitivamente, eu nasci no país errado.
Meu corpo não suporta o calor. Minha mente, tampouco.
Acho inadmissível viver num lugar do planeta onde não se pode vestir descentemente porque isso coloca em risco a minha sobrevivência. Afinal, posso morrer de calor se não usar roupas leves e pequenas.
O fato é que eu não deveria ser brasileira.
O povo daqui é tão sensual, receptivo e sinestésico.
Eu não.
Eu gosto de roupas fechadas em punhos e pescoço, gosto de cumprimentar de longe e odeio que coloquem a mão em mim. Juro que não é afetação – só acho que não há necessidade de colocar a mão na minha perna enquanto me conta sobre a briga com o irmão nem no meu ombro enquanto fala sobre a venda do carro. Confesso que tenho bons amigos que são assim, mas eu levei muito tempo até conseguir gostar deles. E também confesso que minha vida era muito mais tranqüila até o dia que eles descobriram que eu abomino o tal “abraço de urso”... mas isso é outra história.
O fato é que o Brasil é um país de calor atmosférico e humano, e eu não aprecio nada disso.
Sou naturalmente européia. Não francesa, pois também não gosto daquela soberba intelectual dos da França. Não inglesa, pois não me agrada aquela arrogância impertinente dos britânicos. Não italiana porque careço de sensualidade e não sueca porque me faltam educação e bons modos.
Sou naturalmente escocesa.
Sou humilde e simpática de uma forma bem sutil.
Sei sorrir com alguma doçura e considero absurdamente sexy o traje kilt.
Amo o frio e as paisagens bucólicas.
Dia desses comecei a traçar meu itinerário e até encontrei a cidadezinha onde quero viver ao norte da Escócia.
Passarei todas as minhas próximas noites implorando a Deus para que me arrebate deste lugar e me leve para aquele cantinho paradisíaco do mundo, onde poderei construir meu reino de solidão, silêncio, frio e paz.
Até lá, sigo brasileirando amargamente.
Se o calor não der cabo de mim... Um dia escreverei de algum lugarzinho recôndito da Escócia e postarei a foto de um belo exemplar de macho escocês enfiado dentro daquele traje em xadrez afrodisíaco.
Que Deus Pai ouça minhas preces.
Amém.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Ofício nº 260486

Hawik, 19 de fevereiro de 2009.

Ao Senhor Menino da Estrela.

Venho por meio deste, informar a Vossa Senhoria que, a partir desta data, fica oficializado e publicado neste espaço para que haja testemunhas, que cansei dessa merda.
Estou cansada de ser a Julieta, Isolda, Sierva Maria ou qualquer outra pobre infeliz da literatura.
Vossa Senhoria sabe perfeitamente que minha insolência não me permite representar esses papéis de mocinhas sofredoras e ainda tem a pachorra de ficar aí com esse seu arremedo de amor que não leva a lugar nenhum.
Está esperando o que? Que Deus ou o Diabo resolva todos os vossos problemas?
E ainda fala comigo como se fosse a maior vítima dessa maldita história só porque está mortificado de vergonha por ter batido no peito se dizendo um exemplo de coragem e força.
Bem feito para Vossa Senhoria.
Quer que eu sinta pena?
Pena tenho é de mim, que estou chorando e tropeçando nos meus próprios sentimentos de tanta saudade que sinto.
Vossa Senhoria é demasiado contraditório: Primeiro, me dizia com belas palavras que vosso amor fortalecia-o diante das adversidades que deveria enfrentar. Depois, derrotado, defendia um amor diferente, que deve bastar-se e “contemplar a si mesmo”.
Vossa Senhoria faz do amor o que lhe convém?
Pensa que o fato de me amar justifica ter-me deixado no limbo da dúvida por tanto tempo, sem que pudesse saber o que havia acontecido?
Pensa que vosso amor lhe isenta da culpa de ter-me feito implorar para que me contasse o maravilhoso final que destes a este “conto” miserável?
Sinceramente, senhor Menino da Estrela. Estou farta.
Espero que Vossa Senhoria tome providências imediatas (voltar pra mim o mais rápido possível sugere providência extremamente satisfatória), pois caso contrário, jurarei solenemente que as únicas palavras que voltará a ouvir de mim serão acusações tão agressivas quanto estas que acabo de fazer.
Jurarei nunca mais representar esse papel medíocre de donzela que cultiva e sustenta o amor de seu príncipe acima de qualquer provação. Afinal, nos belos contos o príncipe também faz sua parte.
Cansei-me dessa merda, senhor Menino da Estrela.
E, se Vossa Senhoria ainda não entendeu, finalizo enfatizando que isso é uma ameaça pública e formal. Para que, depois, Vossa Senhoria não possa dizer que não estava ciente de minhas resoluções.
Certa de contar com a vossa colaboração.
Sem mais no momento, desde já agradeço a atenção dispensada.

Cordialmente,

A Doninha de Ninguém.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

E também pode ser assim:


Ele joga o cinzeiro contra a parede e diz que há tempos queria quebrá-lo e nunca mais sentir o maldito cheiro de fumaça dentro daquela casa.
Ela arremessa o relógio que ele ganhou de presente do irmão mais velho e grita todos os palavrões que deixam os vizinhos escandalizados.
Estão quase cometendo um assassinato.
Ele a acusa de negligência.
Ela o acusa de apatia.
Ele apenas acusa.
Ela xinga. Aos gritos.
É um deus nos acuda.
Ela diz que está levando apenas seus livros e CDs e que o que ficar pra trás ele pode enfiar num lugar que estarrece os vizinhos.
Ele odeia aqueles palavrões. Odeia.
Ela sabe disso.
Ele levanta o braço para dar-lhe uma tapa e ela oferece o rosto como se fosse para um carinho.
Os lábios dele se contraem de raiva e o estômago dela dói de amor.
É uma luta inglória.
Ele se afasta e ela o manda para o inferno.
Lá vem um novo festival de palavrões.
Ele a manda calar.
Ela obedece e acende um cigarro.
Ele apenas observa e recomeça o circo assim que ela joga as cinzas no chão.
Quem mandou você quebrar o meu cinzeiro?
Como ele pôde viver tanto tempo com alguém tão detestável?
Ele é sensato.
Ela é histérica.
Ele não vê a hora que ela vá embora para que os vizinhos possam dormir.
Ela prolonga exaustivamente aquela aflição.
Fodam-se os vizinhos. Já os viram e ouviram em situações muitos mais ultrajantes para os olhos de quem não está participando.
Ele não a ama, por isso os gritos não fazem sentido.
Ela o ama profundamente, por isso não faz sentido ir embora sem antes gritar e quebrar todos os objetos que ele preza e berrar todos os palavrões que ele odeia.
Ele quer ficar sozinho.
Ela quer que seja assim: um deus nos acuda.
Principalmente para os vizinhos.

A tela é do Munch.