sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Scotland


Definitivamente, eu nasci no país errado.
Meu corpo não suporta o calor. Minha mente, tampouco.
Acho inadmissível viver num lugar do planeta onde não se pode vestir descentemente porque isso coloca em risco a minha sobrevivência. Afinal, posso morrer de calor se não usar roupas leves e pequenas.
O fato é que eu não deveria ser brasileira.
O povo daqui é tão sensual, receptivo e sinestésico.
Eu não.
Eu gosto de roupas fechadas em punhos e pescoço, gosto de cumprimentar de longe e odeio que coloquem a mão em mim. Juro que não é afetação – só acho que não há necessidade de colocar a mão na minha perna enquanto me conta sobre a briga com o irmão nem no meu ombro enquanto fala sobre a venda do carro. Confesso que tenho bons amigos que são assim, mas eu levei muito tempo até conseguir gostar deles. E também confesso que minha vida era muito mais tranqüila até o dia que eles descobriram que eu abomino o tal “abraço de urso”... mas isso é outra história.
O fato é que o Brasil é um país de calor atmosférico e humano, e eu não aprecio nada disso.
Sou naturalmente européia. Não francesa, pois também não gosto daquela soberba intelectual dos da França. Não inglesa, pois não me agrada aquela arrogância impertinente dos britânicos. Não italiana porque careço de sensualidade e não sueca porque me faltam educação e bons modos.
Sou naturalmente escocesa.
Sou humilde e simpática de uma forma bem sutil.
Sei sorrir com alguma doçura e considero absurdamente sexy o traje kilt.
Amo o frio e as paisagens bucólicas.
Dia desses comecei a traçar meu itinerário e até encontrei a cidadezinha onde quero viver ao norte da Escócia.
Passarei todas as minhas próximas noites implorando a Deus para que me arrebate deste lugar e me leve para aquele cantinho paradisíaco do mundo, onde poderei construir meu reino de solidão, silêncio, frio e paz.
Até lá, sigo brasileirando amargamente.
Se o calor não der cabo de mim... Um dia escreverei de algum lugarzinho recôndito da Escócia e postarei a foto de um belo exemplar de macho escocês enfiado dentro daquele traje em xadrez afrodisíaco.
Que Deus Pai ouça minhas preces.
Amém.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Ofício nº 260486

Hawik, 19 de fevereiro de 2009.

Ao Senhor Menino da Estrela.

Venho por meio deste, informar a Vossa Senhoria que, a partir desta data, fica oficializado e publicado neste espaço para que haja testemunhas, que cansei dessa merda.
Estou cansada de ser a Julieta, Isolda, Sierva Maria ou qualquer outra pobre infeliz da literatura.
Vossa Senhoria sabe perfeitamente que minha insolência não me permite representar esses papéis de mocinhas sofredoras e ainda tem a pachorra de ficar aí com esse seu arremedo de amor que não leva a lugar nenhum.
Está esperando o que? Que Deus ou o Diabo resolva todos os vossos problemas?
E ainda fala comigo como se fosse a maior vítima dessa maldita história só porque está mortificado de vergonha por ter batido no peito se dizendo um exemplo de coragem e força.
Bem feito para Vossa Senhoria.
Quer que eu sinta pena?
Pena tenho é de mim, que estou chorando e tropeçando nos meus próprios sentimentos de tanta saudade que sinto.
Vossa Senhoria é demasiado contraditório: Primeiro, me dizia com belas palavras que vosso amor fortalecia-o diante das adversidades que deveria enfrentar. Depois, derrotado, defendia um amor diferente, que deve bastar-se e “contemplar a si mesmo”.
Vossa Senhoria faz do amor o que lhe convém?
Pensa que o fato de me amar justifica ter-me deixado no limbo da dúvida por tanto tempo, sem que pudesse saber o que havia acontecido?
Pensa que vosso amor lhe isenta da culpa de ter-me feito implorar para que me contasse o maravilhoso final que destes a este “conto” miserável?
Sinceramente, senhor Menino da Estrela. Estou farta.
Espero que Vossa Senhoria tome providências imediatas (voltar pra mim o mais rápido possível sugere providência extremamente satisfatória), pois caso contrário, jurarei solenemente que as únicas palavras que voltará a ouvir de mim serão acusações tão agressivas quanto estas que acabo de fazer.
Jurarei nunca mais representar esse papel medíocre de donzela que cultiva e sustenta o amor de seu príncipe acima de qualquer provação. Afinal, nos belos contos o príncipe também faz sua parte.
Cansei-me dessa merda, senhor Menino da Estrela.
E, se Vossa Senhoria ainda não entendeu, finalizo enfatizando que isso é uma ameaça pública e formal. Para que, depois, Vossa Senhoria não possa dizer que não estava ciente de minhas resoluções.
Certa de contar com a vossa colaboração.
Sem mais no momento, desde já agradeço a atenção dispensada.

Cordialmente,

A Doninha de Ninguém.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

E também pode ser assim:


Ele joga o cinzeiro contra a parede e diz que há tempos queria quebrá-lo e nunca mais sentir o maldito cheiro de fumaça dentro daquela casa.
Ela arremessa o relógio que ele ganhou de presente do irmão mais velho e grita todos os palavrões que deixam os vizinhos escandalizados.
Estão quase cometendo um assassinato.
Ele a acusa de negligência.
Ela o acusa de apatia.
Ele apenas acusa.
Ela xinga. Aos gritos.
É um deus nos acuda.
Ela diz que está levando apenas seus livros e CDs e que o que ficar pra trás ele pode enfiar num lugar que estarrece os vizinhos.
Ele odeia aqueles palavrões. Odeia.
Ela sabe disso.
Ele levanta o braço para dar-lhe uma tapa e ela oferece o rosto como se fosse para um carinho.
Os lábios dele se contraem de raiva e o estômago dela dói de amor.
É uma luta inglória.
Ele se afasta e ela o manda para o inferno.
Lá vem um novo festival de palavrões.
Ele a manda calar.
Ela obedece e acende um cigarro.
Ele apenas observa e recomeça o circo assim que ela joga as cinzas no chão.
Quem mandou você quebrar o meu cinzeiro?
Como ele pôde viver tanto tempo com alguém tão detestável?
Ele é sensato.
Ela é histérica.
Ele não vê a hora que ela vá embora para que os vizinhos possam dormir.
Ela prolonga exaustivamente aquela aflição.
Fodam-se os vizinhos. Já os viram e ouviram em situações muitos mais ultrajantes para os olhos de quem não está participando.
Ele não a ama, por isso os gritos não fazem sentido.
Ela o ama profundamente, por isso não faz sentido ir embora sem antes gritar e quebrar todos os objetos que ele preza e berrar todos os palavrões que ele odeia.
Ele quer ficar sozinho.
Ela quer que seja assim: um deus nos acuda.
Principalmente para os vizinhos.

A tela é do Munch.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Is This Love


O pequeno relógio observa tudo atentamente em cima da cômoda do quarto. Seus ponteiros cruéis acusando-os da vida que perderam. É um inquisidor, mas abrandou suas palavras diante do fim que constrange até o mais insensível dos objetos que, após testemunhar todos os erros e acertos e brigas e reconciliações, instituiu-se juiz de um tribunal sem contas.
Enquanto o casal tenta estupidamente eleger um culpado pela desventura, o relógio se distrai olhando entediado a disposição dos CDs meticulosamente separados. Do lado esquerdo os dela – ótimos. Ela tem um excelente gosto musical. Do lado direito os dele – patéticos.
Como ela suportou aquelas canções medíocres por tanto tempo?
Pois é... Is this Love.
O amor suporta até o pior dos gostos musicais.
O silêncio do samba que não está tocando incomoda o casal e o relógio grita para que acabem logo com aquela cena deprimente. Sabem que é hora de romper.
O que ela ainda está fazendo ali?
Terminando seu cigarro.
O relógio pensa que, se for pra culpar alguém, que seja ela.
Por que a moça havia de querer ser feliz? Não precisava. Numa relação daquelas a felicidade era algo absolutamente dispensável.
Malditos sambas bons... cúmplices dela neste crime de alegria.
Ela está maquiada. Ele sabe que ela não vai para casa. Vai sair. Com quem? Amigas que vão consolá-la num bom bar.
Malditas amigas. Vão convencê-la de que foi melhor assim, de que a relação já estava sendo destrutiva há tempos e vão pôr a culpa nele.
O relógio pede para ir com ela, para que possa defendê-lo das acusações injustas das amigas.
Ele não vai se consolar com ninguém. Vai ficar ali. Talvez ouvindo alguma música ruim...
Talvez chore.
O relógio poderia muito bem defendê-lo no bar, mas é incapaz de consolá-lo. Daí já é demais!
Não é possível! Será que ela acendeu outro cigarro ou ainda é o mesmo que conspira contra a libertação e insiste em não acabar nunca?
O relógio a repreende. Como ela pode fumar num momento assim?
Como pode se dar ao luxo do prazer no instante em que deve unicamente sofrer?
A culpa é dela mesmo. Egoísta.
Por isso está chorando. De remorso.
Ele não chora.
Sabe que continuará sendo a mesma pessoa que vive e sonha e dorme e acorda e trabalha e morre todos os dias. Só que agora não terá mais uma testemunha ocular que lhe sorri à tarde quando chega do trabalho e que bebe cerveja com o maior prazer do mundo e que canta alto um samba do Zé Keti pelos corredores da casa enquanto procura os óculos batucando nas portas.
Nunca mais o Noel há de cantar dentro dessa casa.
Agora pelo menos vai poder dormir melhor.
Nunca dormiu bem ao lado dela.
Agora pelo menos aquele cheiro de cigarro vai desaparecer.
Vai jogar fora o cinzeiro de vidro.
Nunca mais haverá fumaça dentro dessa casa.
Ela coloca a bolsa no ombro e o abraça chorando.
O relógio desvia o olhar, mas todos os outros objetos choram com ela.
Os únicos que permanecem inexpressivos (ele e o relógio) são os que mais a amam e têm certeza de que a culpa foi dessa necessidade incontida dela de ser feliz.
Poderiam morrer juntos se ela não tivesse esses desejos pueris.
Poderiam ter tido um filho e ele até permitiria que o menino tivesse o nome do pianista que ela gosta.
Poderiam ter composto uma música juntos.
Poderiam ter escrito um romance.
Poderiam tantas coisas – por que ela não esquecia aquela bobagem?
Ele não ouve os passos dela na escada. Talvez ela ainda esteja parada do lado de fora.
Não.
Se estivesse ele a ouviria chorar. Porque ele sabe que ela está chorando desesperadamente agora, enxugando as lágrimas com as costas da mão esquerda enquanto a direita busca a carteira de cigarros dentro da bolsa.
Deixe que chore.
A culpa foi dela mesmo.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

É assim:


Você chega cansado, mal humorado, sozinho e seu cabelo já não corresponde as suas expectativas.
Encontra algumas pessoas que te orientam sobre o que deve fazer e onde deve ir.
Fotógrafo. “Vamos fazer uma foto sua assinando”. Mas eu nem estou de beca. Tudo bem...
Em poucos minutos está dentro da beca e pergunta para vinte e oito pessoas de que lado deve ficar aquela faixa horrível da cintura. Quatorze diz que é do esquerdo e a outra metade diz que é do lado direito. Você deixa do jeito que está e finge que a faixa nem existe.
Entra naquele ginásio de esportes descomunal e segue as outras pessoas da sua turma até o lugar designado a você.
Sente-se mal por ver que todas as outras formandas estão com um belo salto até que a quinta delas olha pra você e diz com expressão de cansaço o quanto se arrependeu por não ter colocado um sapato igual ao seu.
Pode sentar ou é pra ficar em pé?
Fotógrafos. “Olha aqui pra gente fazer uma foto sua de capelo”. O que?
Todo mundo sentado. Alguém se pronuncia. Você não consegue prestar atenção nas palavras. Está procurando sua família na arquibancada. Olha para todos os lados. Não vê ninguém.
Que calor.
A orquestra toca algo. Todos ficam em pé. Acabou. Todos se sentam.
Você olha para os lados.
Alguém está falando de novo.
Lá vem o fotógrafo. Foto com o canudo. Com a sua colega. Com o capelo de novo. “Mas o capelo não pára na minha cabeça!” Deixa pra lá...
Cadê essa gente?
Isso não é uma beca, é uma mortalha.
Que sede.
Quem está falando? Sei lá.
E a orquestra de novo. Todos se levantam.
Acabou. Podem se sentar.
Suando em bicas... Pelo menos o capelo existe: para você se abanar.
Dá outra olhada. Sua família te enganou. Não vieram...
Tudo bem. Você disse que deveriam vir só se quisessem. Não quiseram.
Estão vaiando. Vaiando quem? O reitor.
E ele fala. Fala. Fala...
Juramento. Jura que vai mandar esse fotógrafo tomar naquele lugar se ele olhar pra você de novo.
“Levanta o braço, moça. Vamos fazer uma do juramento”.
Olha-o como quem vai mandá-lo tomar naquele lugar e ele te olha insolente, esperando sua pose.
Está bem. Foto do juramento.
Seu celular toca. É o número da sua mãe, mas é a irmã quem fala. Pergunta onde estão. “Atrás de você, sua burra. Olha pra cá”.
Lá estão eles. Exaustos de tanto acenar. E você sempre os procurando no lado oposto.
Sente-se feliz. E um pouco idiota também.
“A gente já colou?” “O quê?”
É a colega do lado... Quer saber se já aconteceu a parte da cerimônia que os faz efetivamente “colados”. Sei lá. Explica que estava à procura dos seus familiares.
Em pé de novo. Mandam que acenem para os familiares. Agradeçam os pais. Eles acenam de volta. Estão felizes.
Sua mãe está com um belo vestido e seu pai está profundamente mal humorado.
O calor vai te matar e sua maquiagem já te abandonou há muito tempo.
Estão vaiando novamente. Quem dessa vez? Parece que é um deputado. Ele você também vaia.
Falta pouco, agora é só o prefeito falar.
A orquestra de novo.
Mais oito mil fotos com este fotógrafo desgraçado.
Sua querida professora te entrega o certificado.
Você abraça todos os amigos.
Esperou quatro anos por este momento e agora está encolhido no fundo dessa beca maltratando os fotógrafos e acenando para sua família.
Acabou. Lá vêm eles.
Abraços e mais fotos.
Seu pai está realmente impaciente.
Eles vêm com flores...
Flores. E são pra você.
Você agradece. Sorri.
Acabou.
Vão embora.
Finalmente você vai tomar sua merecida cerveja e falar sobre a emoção deste momento.
Finalmente não há mais nada entre você e esta profissão.
É um nascimento. Você ficou tão sufocado de calor dentro daquela roupa e tão ansioso procurando sua família, que não se deu conta de que nasceu como profissional.
Percebe isso no bar. Tomando sua merecida cerveja e conversando com pessoas que você nunca havia visto até aquele dia.
Mas tudo bem. Você também não existia até aquele dia.
Não existia como profissional que agora você tem a obrigação de se tornar.
O emprego?
Ah... Isso é outra história. Afinal, você acaba de nascer. Agora, vai começar a engatinhar.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Diário de campo.


Você já fez alguma coisa totalmente ridícula sem estar bêbado?
Ela já. Várias vezes.
Uma delas – acho que a pior de todas – ensaiou por muito tempo antes de tomar coragem para fazer.
Foi tempo suficiente para perceber que aquilo era um disparate.
Mas não. Quando tem que ser ridícula ela obedece cegamente todas as ordens e regras da insensatez e faz tudo dentro do maior rigor. E sempre tem um bom motivo pra isso.
Quando alguém relembra o acontecido ela faz questão de levantar o dedo indicador e dizer de forma acusadora que foi amplamente incentivada por “amigos” que adoraram a idéia de um outro “amigo” que acabou dando no que deu. Agradece sarcasticamente a corja de amigos no final das contas e ri gostoso...
Vou contar essa bela historinha que deveria levar o título: “O elogio da insensatez”.

Ela fazia estágio duas vezes por semana numa instituição filantrópica em uma cidade vizinha. (Parece que eu aprendi a escrever "vizinha")
Odiava aquele estágio.
Por vezes ia chorando dentro do ônibus. Chorava de sono e de raiva.
Estava passando por dias realmente ruins. Ainda não estava tomando os tais homeopáticos quando tudo começou.
A instituição do estágio, a supervisora e o estágio em si, provavelmente eram ótimas. Ela é que estava inventando um monte de cruzes para carregar. E aquela falta de ar... era sempre assim quando estava nervosa.
Um dia olhou pela janela num ponto em que muitos desciam para uma conexão e viu um sujeito parado.
Gostou dos olhos dele. Eram levemente caídos nos cantos externos e davam-lhe uma expressão de quem não estava nem aí para o que se passava ao seu redor.
O ônibus tocou e ela voltou a pensar que em breve estaria dentro daquela instituição sem ter a menor noção do que deveria fazer. E a falta de ar que lhe provocava aquelas dores horríveis no peito...
Passados dois dias voltou a pegar o ônibus e viu que o sujeito estava lá dentro! Ele pegava o mesmo ônibus, mas descia antes dela, para fazer a conexão.
Sempre sério. Às vezes com fones no ouvido, às vezes lendo alguma coisa... Nunca olhando para os lados. Nunca olhando para as pessoas. Muito menos para a nossa adorável estagiária.
Um dia ele desceu e ela se distraiu a olhá-lo. Penso que ele percebeu, pois a olhou de fora com expressão um pouco desconfortável.
Ela mais do que depressa desviou o olhar e procurou ser mais discreta.
Preciso deixar bem claro que aquilo nem de longe era uma paquera. Tanto que a principal preocupação dela era que ele nunca percebesse seus olhares.
Estava apenas gostando de passar aqueles minutos outrora terríveis a imaginar o que ele estaria lendo, o que ouvia e no que pensava quando olhava demoradamente pela janela fitando a estrada...
Era um homem alto e bem vestido. Sempre de movimentos polidos. Aparentemente formal.
Não era o tipo de homem que ela gostava.
Mas quando ele estava com a barba por fazer ela se demorava mais ao olhá-lo. Gostava da barba.
E assim ela foi desde abril até meados de novembro.
Todas as manhãs olhando-o...
E sempre cuidando para que ele não percebesse.
Pode ser que não tenha notado nada mesmo.
Mas, próximo ao fim de novembro (e nesta altura ela já estava obtendo grandes avanços com a homeopatia) se deu conta de que o ano estava acabando. O estágio estava acabando. As viagens pela manhã estavam acabando...
Ela não voltaria a ver aquele sujeito alto e formal e sério que sempre ouvia músicas que ela não sabia quais eram e lia coisas que ela não sabia se comoviam alguém e parava no ponto com a altivez de quem não fazia parte daquelas manhãs enfadonhas e olhava para frente como se nada daquilo existisse de verdade e tinha os cantos externos dos olhos caídos numa expressão de desdém...
Livre das faltas de ar e sentindo-se milagrosamente bem, não gostou da idéia de ter passado quase oito meses observando uma criatura e depois nunca mais vê-la.
Comentou com sua corja de amigos.
Foi um pandemônio. É claro que seus argumentos de que não era interesse não convenceram as “amigas” loucas e adoravelmente inconseqüentes que ficaram eufóricas com a história.
Comentou então com um amigo que parecia ser um pouco mais sensato, pois talvez ele entendesse seus argumentos.
O amigo fingiu que entendeu do mesmo jeito que sempre havia fingido ser um pouco mais sensato.
Pensaram juntos no que ela deveria fazer.
O problema é que a nossa adorável estagiária, além de ser uma aprendiza em muito mais do que na profissão, é tímida.
Muito tímida.
Bom dia? Nem pensar.
Sentar-se ao lado dele? Nem sob tortura física, moral e psicológica.
Fingir uma convulsão e se jogar em espasmos sobre seu colo? Hum... não não. Melhor não.
Assim fica difícil...
Passaram mais de uma noite pensando...
O tempo estava passando e, em breve, ela não o veria mais.
Até que o amigo que fingia ser sensato e fingiu entender a inocência dos motivos da menina, teve uma brilhante idéia!!
Até hoje me pergunto chocada como foi que ele conseguiu convencê-la a fazer aquilo.
Até hoje me pego pensando em quais foram os artifícios de manipulação e persuasão que aquele sujeito usou para fazê-la acreditar que aquilo não era um disparate.
A idéia brilhante: Antes do Amanhecer.
O filme, aquele dos dois jovenzinhos românticos que viajam de trem e se apaixonam e têm até o amanhecer do dia para ficarem juntos.
Superficialmente é só isso. Mas, a querida estagiária e eu sempre acreditamos que o tal filme é sobre algo muito mais encantador: as pessoas.
A idéia constituía-se em entregar o filme para o sujeito...
Assim, sem bom dia nem sentar-se ao lado dele nem convulsão.
O amigo fez a cópia do filme. O resto era com ela.
Apesar de aprendiza e tímida, ela é um pouco criativa.
Eis o grande conflito:
Entrava no ônibus pela manhã, olhava-o com o filme nas mãos. O ano e o estagio e as viagens próximos do fim...
Quanta tensão. Este é o clímax da historinha que já está ficando longa demais.
E no último dia de estágio ela rabiscou seu e-mail na contra capa e foi para sua última viagem decidida a falar com o tal sujeito sério.
Sabe-se lá Deus o que havia acontecido naquele dia, mas o fato é que não havia ninguém sentado ao lado dele, nem na frente dele, nem atrás dele...
Ela se encolheu num banco à frente. Abriu um livro. Fingiu ler, mas era incapaz. Naquele momento ela era absolutamente analfabeta.
Seu coração já havia percorrido todo seu esôfago e estava chegando feliz da vida na garganta...
Antes que o sujeito descesse do ônibus e seu coração se atirasse de sua boca, se virou e tentou um sorriso. Foi péssimo.
Falou meia-dúzia de palavras que nem eu que estava ali de forma sobrenatural e sei de todos os detalhes porque sou onipresente consegui ouvir.
Ele agradeceu pelo filme (ela não gostou da voz dele e seu sorriso pareceu corromper os traços que ela mais gostava do seu rosto porque nunca havia imaginado como seria seu rosto quando sorria). Despediu-se, desceu do ônibus e ela ficou ali... Naufragou.
Não sabe se de alegria ou de embaraço.
Penso que foi alegria, mas meus poderes sobrenaturais já não conseguiam acompanhar as sensações da querida estagiária por isso não ouso afirmar nada.
No que deu tudo isso?
Em nada.
Ah... sei que é frustrante. Mas ela é só uma aprendiza.
Chegaram a trocar alguns e-mails a partir de janeiro.
Qual não foi sua surpresa quando, no segundo dia do ano ela abriu sua caixa de mensagens e leu o e-mail educado e exageradamente formal de um sujeito de nome insólito que dizia ser o cara do ônibus.
Riu-se muito, pois havia imaginado todos os nomes do mundo para o sujeito sério, menos aquele composto arrebatador. Que lindo é seu nome... Gostaria de poder contar, mas seria expor o rapaz e meu código de ética não permite isso.
E até hoje nós não sabemos como ele se sentiu ao receber aquele filme ótimo de uma desconhecida dentro de um ônibus antes de saber que se tratava de uma humilde aprendiza da vida (mais tarde, através da meia dúzia de e-mails ele pôde notar).
Sei que eu poderia descobrir o que se passou pela cabeça do rapaz com meus poderes extraordinários, mas meu código de ética não permite que eu faça isso também.
Nem sabemos ou não nos lembramos se ele disse em algum e-mail o que achou do filme...
E os dois nunca mais se viram.
Ela sempre se lembra dele quando entra num ônibus, e às vezes até olha a sua volta esperando vê-lo com suas leituras ou fones de ouvido... Se o visse iria sorrir de verdade dessa vez, pois ficaria verdadeiramente feliz por encontrá-lo.
Deve ser uma pessoa interessante... Apesar de exageradamente formal.
Ela se envergonha do que fez e xingou durante muito tempo o tal amigo.
Mas, jamais se arrependeu a nossa querida estagiária. Afinal, estagiários existem para aprender...
Aprendeu a delícia que é sentir seu coração percorrendo todo seu esôfago. E o desespero de ter que agir antes que ele alcance a garganta e salte feliz da vida pela boca.


PS: A foto é uma cena do filme Antes do Amanhecer, que eu adoro e recomendo.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Diálogo


Ele:
- você me ama?
Ela:
- não
Ele:
- o que é então?
Ela:
- sono
Ele:
- por que não tivemos um filho?
Ela:
- porque alguns dos meus órgãos são estéreis
Ele:
- você vai embora?
Ela:
- vou
Ele:
- é tarde
Ela:
- concordo
Ele:
- você vai voltar?
Ela:
- nunca
Ele:
- por quê?
Ela:
- porque meu cigarro acabou
Ele:
- você vai chorar?
Ela:
- talvez
Ele:
- é só ficar
Ela:
- preciso dormir
Ele:
- dorme aqui
Ela:
- não consigo dormir ao seu lado
Ele:
- por que?
Ela:
- porque alguns dos meus órgãos são estéreis
Ele:
- você me amava?
Ela:
- não
Ele:
- o que era então?
Ela:
- era sono
Ele:
- você chorava?
Ela:
- as vezes
Ele:
- onde eu estava?
Ela:
- se escondendo
Ele:
- por que não me chamou?
Ela:
- porque meu cigarro acabou
Ele:
- você vai voltar?
Ela:
- nunca
Ele:
- por que?
Ela:
- não consigo dormir ao seu lado.
Ele:
- vou chorar
Ela:
- vou me esconder
Ele:
- está se vingando?
Ela:
- estou aprendendo
Ele:
- vou sentir saudades
Ela:
- vou dormir.
Ele:
- vou atrás de você
Ela:
- concordo
Ele:
- é tarde?
Ela:
- não
Ele:
- você vai voltar?
Ela:
- talvez
Ele:
- por que?
Ela:
- porque alguns dos meus órgãos são estéreis
Ele:
- pare de fumar
Ela:
- por que?
Ele:
- porque o cigarro pode te matar
Ela:
- você também
Ele:
- concordo
Ela:
- você me ama?
Ele:
- não sei
Ela:
- não disse?
Ele:
- o que?
Ela:
- você também pode me matar
Ele:
- se eu disser que te amo, você fica?
Ela:
- não
Ele:
- por que?
Ela:
- porque alguns dos meus órgãos são estéreis.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Aleluia - Edu Lobo e Ruy Guerra


Barco deitado na areia não dá pra viver, não dá

Lua bonita sozinha não faz o amor, não faz

Toma decisão, aleluia!

Que um dia o céu vai mudar

Quem viveu a vida da gente tem que se arriscar

Amanhã é teu dia amanhã é teu mar, teu mar

E se o vento da terra que traz teu amor, já vem

Toma decisão, aleluia!

Lança teu saveiro no mar

Bê-á-bá de pesca é coragem, ganha o teu lugar


Mesmo com a morte esperando eu me largo pro mar, eu vou

Tudo que sei é viver e vivendo é que eu vou morrer

Toma decisão, tá na hora!

Que um dia o céu vai mudar

Quem não tem mais nada a perder só vai poder ganhar

Só vai poder ganhar

Vai poder ganhar

Poder ganhar

Ganhar