quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O dizimista


Escorreu tranqüilo pelo asfalto – altivo e seguro de sua singularidade e importância, do impacto de sua cor e do desconforto que causava. Seguiu desviando insolente das ranhuras e irregularidades da rua íngreme.

O primeiro carro parou. O motorista de meia idade, funcionário público, casado, pai de dois e discretamente calvo, entre encantado e aterrorizado, seguiu com os olhos, mas não teve coragem de seguir com os pneus. Atrás, a fila de carros crescendo na rua estreita, alguns até buzinando impacientes, alheios ao espetáculo que dançava rua abaixo um pouco à frente, se exibindo em curvas cuidadosamente elaboradas para o desenho infame que seduzia os curiosos.

Na porta da loja de eletrodomésticos, a vendedora loira e ligeiramente acima do peso também observava com singular afetação o mórbido passeio que seguia com requinte e precisão, como se soubesse exatamente onde deveria ir.

Uma criança de olhos grandes e cabelos desgrenhados aproveitou o estado de total paralisia da mãe e se soltou para segui-lo, mas foi imediatamente repreendido por estranhos mais hipócritas que bradavam ser tal ato uma extrema falta de respeito, embora a criança soubesse que, na verdade, todos estavam mortificados de medo por não saber onde aquilo iria parar.

Durante os longos e angustiantes minutos em que insistiu em sua descida obstinada, o silêncio interrompeu o pandemônio de indignação e horror produzindo um cenário de encantamento que comoveu todos os presentes. Alguns metros à frente, morreu na curva sem avisar ninguém.

O motorista de meia idade, entre frustrado e aliviado, cruzou seu rastro maculando os pneus e foi imitado pelo cortejo de carros que passava lentamente para que os motoristas fossem transformados em testemunhas oculares do fato que contariam nas proximidades da garrafa de café do escritório.

No alto da rua, o morto parecia olhar o desenho que nascia de um triste buraco em sua cabeça. Lá embaixo, na curva, morreu o último fio de vida do pobre morto que iria depositar – religiosamente – o dinheiro da Igreja, mas teve sua cabeça estourada pela bala do revólver de um motoqueiro qualquer que recolheu os dízimos da semana toda as dez da manhã na porta do banco.

No dia seguinte, o conto corria pelas bocas e jornais da cidade: o dízimo escorreu e desenhou no asfalto.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Doses homeopáticas


Tinha pouco: um estômago estragado pelo café e tantos cigarros, um subconsciente atrevido que produzia sonhos engraçados, um cuidado excessivo com a pouca saúde mental e a certeza reconquistada da realidade – mesmo essa, escorregadia e suspensa. Sóbria. Sem a anestesia do álcool, a promessa dos dias futuros ficava cada vez mais interessante para alguém que já conhecia o medo. Esquecia-se dentro de si, recebendo sopros da solidariedade alheia como resultado do maldito comentário distraído que só serviu para atrair olhares piedosos e convites para o bar. Ficava. Deixava-se ficar. O desespero ao lado – adiava. Lia. Trabalhava. Perambulava. Voltava. O mundo cada vez mais cheio de gente normal. O estômago burro cultivando o mau hábito de não ir embora enquanto reproduz um título universal. Como é que fica depois de? A trilha sonora perfeita. O atraso provocado. O afastamento. A acusação pendurada no cabide, ainda com etiqueta, ao avesso com todos os outros objetos que continuam falando de um mundo fácil e falacioso. Buscando nos cantos o ponto final, o golpe certo, o suspiro aliviado de quem já pode cair e chorar, encontrava apenas intervalos, a respiração presa, a ameaça. Talvez seja melhor assim – doses homeopáticas do fim. O grito preso na ausência. A lágrima abortada no fundo do silêncio que a dúvida deixa em cada esquina. Ainda não chegou a hora, baby. É só uma crise, o amor não é tão cruel. Talvez seja, mas não com quem não merece. Talvez seja, mas... em doses homeopáticas.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Velha roupa colorida*


Uma caixa escondida no fundo da estante guarda sua infância anêmica. O piso já não é o mesmo e o antigo cão peludinho que contraditoriamente armava emboscadas brutais contra panturrilhas desavisadas embaixo das camas foi substituído por um vira-latas preto que ri de todo mundo deitado no canto da porta.

A cidade está cada vez mais empoeirada pelo tempo.

Os sofás onde os pretendentes das irmãs mais velhas afundavam perplexos diante da entrevista cruel do pai também foram substituídos por outros onde alguns namorados distraídos das irmãs mais novas sentam para uma cerveja de domingo e as piadas do pai inofensivo. O novo sofá já não protege o coração das filhas mais novas nem as condena ao casamento dos tradicionais valores da família cristã. Parece até que, por milagre, os tradicionais valores da família cristã foram esquecidos com a velha caixa na estante. Entre malandros e filósofos, hippies e índios, maníacos-depressivos e dependentes químicos, todos encontram no velho pai um companheiro de copo e de pesca. A casa foi ficando vazia de filhas durante a semana e repleta de estranhos aos sábados, com dois netos que passaram sem que ninguém percebesse dos carrinhos de bebês para o chão do quintal dali ou dos vizinhos. Os conflitos morais na cozinha foram substituídos por debates históricos no bar. Todos cresceram. Todos. E alguns já começam a morrer.

De repente, o mundo ficou assustadoramente maior – com aeroportos e empregos no meio do caminho. Ao invés de uma permissão ou bronca, o pai lhes deseja sorte, alheio ao passado silencioso dentro da estante e à imensidão que contaminou o mundo.

Seus dedos um tanto afetados vasculham as fotos antigas com uma discreta obsessão por descobrir quem havia sido. Desde que fora embora para tão longe havia adquirido essa falsa nostalgia romântica de quem optou pelo exílio como zona de conforto das relações pessoais.

E o mundo já não cabe em uma caixa de fotografias antigas.

E, de repente, o mundo ficou encantadoramente maior.


*“E o passado é uma roupa que não nos serve mais”

Belchior

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Querida Nina,


Como você está? Espero que esteja bem...

Ficamos muito contentes de receber sua carta e saber que você está se adaptando bem aí.

Eu estou bem aqui... todo fim de tarde me sento nos degraus de madeira esperando o inverno chegar, embora já tenha entendido que aqui o frio é de mentira. Tento não pensar na distância, mas as vezes me entristeço a ponto de explodir em choro e chatice até incomodar dois estados inteiros.

Nunca mais tingi os cabelos e tenho visto uns fios brancos quando vou secá-los – sempre me lembro de você e penso nos comentários que faria se visse minha velhice chegando.

Abelardo andou extremamente desconcertado por causa da cegueira e tenta disfarçar a todo custo, embora seus olhos estejam cada vez mais leitosos e ele vacile cada vez que tenta descer os degraus da cozinha. O que lhe devolveu o bom humor foi um novo amigo que chamamos de Mateus – um vira-latas marrom que faz xixi na cozinha e passa as tardes com Abelardo descobrindo o quintal, sempre muito paciencioso e tolerante com as manias do amigo cego. Quantos anos tem o Abelardo?

Dona Pompeia está cada vez pior da memória e toda semana me pergunta por você quando está varrendo o quintal. Antes eu sempre dizia a verdade, depois comecei a brincar de contar uma história diferente a cada vez que ela aparecia. Até que um dia disse que você fugiu com um cigano e ela simplesmente virou as costas e saiu arrastando a perna direita enquanto resmungava que sempre soube que isso aconteceria. Contei ao Rui e ele me repreendeu por estar confundindo ainda mais a cabeça da pobre dona Pompeia, por isso parei com a brincadeira – mas agora ela acredita em qualquer história que eu conte, menos na verdade e sempre me pergunta pelos ciganos. Você conhece algum cigano, Nina?

Carla vai se casar com aquele rapaz que trabalha no banco. Os dois aparecem toda quarta-feira com uma garrafa de vinho ou um bolo de cenoura e sentamos na varanda pra conversar e ouvir seus discos.

Rafael está fazendo faculdade e descobrindo as misérias da vida acadêmica, mas sempre aparece também pra brincar com Abelardo e pegar livros do Rui. Disse-me que está apaixonado por uma garota e que não tem a menor ideia do que fazer com isso.

A casa continua sendo de todo mundo do jeito que era quando você estava aqui, embora não tenhamos mais seu violão. A cidade toda acompanha suas publicações e espera sua visita.

Dia desses, estava voltando do cinema sozinha e pensei que seria assaltada, mas o sujeito me recitou um poema de rua. Você tinha razão, Nina: há tanta vida no meio-fio e quase nada naqueles corredores que agora também me acusam de.

Até que estou me virando bem entre tantos técnicos-fantoches-de-pano-e-de-vaidades, mas você sabe que isso cansa pra cacete, pois também já foi uma forasteira.

Continuo apaixonada, acredita? Descobrimos que é muito bom cuidar um do outro e ele ainda me abraça três vezes ao dia como fazia meio sem querer quando nos conhecemos.

Estou quase terminando meu livro e quero que você seja a primeira pessoa a ler. Gostaríamos muito que você viesse passar o Natal conosco e acredito que até lá o livro já estará concluído.

Dizem por aqui que você vai publicar uma crônica sobre seus 80 anos e estamos todos muito ansiosos.

A propósito: feliz aniversário! Espero que goste do presente – foi o Rui que escolheu, pois disse que você gosta da cor verde.


Abraços,

Ana.


PS: as luzes continuam acesas.



Imagem de Andy Kehoe

sábado, 4 de junho de 2011

Em voz alta


Buscava elementos literários para um conto oferecido: um varal torto, um vinho chileno, três dias...

Três dias ou um ano? Um ano não cabe num conto. Quem sabe um tratado sobre 30 anos de atraso – um pedido de desculpas por essa juventude inconveniente: “Sorry, baby. Nasci tarde demais, passei 24 anos por aí e depois te encontrei”.

Um passarinho metido a despertador, um abraço bem apertado, um sofá pequeno demais...

Um clássico da literatura universal em prosa erudita sobre o tempo ou um manual prático sobre o amor em três idiomas – sem maiores pretensões. Personagens arrogantes que se encontraram, se perderam e voltaram a se encontrar. Alguma distância para enfeitar e verbos infames de alguém que custou a aprender a pieguice das declarações de amor.

Um beijo de boa noite, uma cama barulhenta, um carinho de bom dia, muitos degraus, cordas...

Um romance ilustrado por poucos objetivos, alguns planos loucos, desejos confessos, impublicáveis, participações especiais e um tanto de saudades.

Receita de bolo... ou daquele pãozinho doce que é preciso saber fazer antes de querer casar misturada com obscenidades escritas na pele a quatro mãos por corpos atentos e corações distraídos.

Um poema distante: “O mundo é tão antigo, amor...”

Múmias, bares, sotaques e olhares em versos pitorescos. Nestas rimas de palavras cadentes que atrapalham os dias, atravessam as madrugadas, se perdem e voltam a se encontrar no meio do caminho de dois personagens arrogantes.


Imagem de Otto Schade encontrada aqui

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Intervenção


O Pai lê Kerouac e espalha sua fumaça ilícita pela casa enquanto a Filha-Jovem-e-Bonita vê o Domingão do Faustão e a Esposa Dedicada lava a louça do almoço excitada lembrando das mãos firmes do pastor segurando sua cintura na noite anterior após o culto. Percebemos apáticos que a cultura beat, a luxúria reprimida e a anticultura global continuam temperando a Sagrada Instituição – mas Machado e Cortazar já não podem fazer disso um bom conto.

O Filho Menor – pobre criança confusa – sentadinho na porta da cozinha, observa a expressão feliz da Mãe e se pergunta quem é louco: o Professor Afetado com sua campanha antidrogas ou o Pai preguiçoso, com sua fumaça fedida e suas ideias de um mundo que ninguém em casa nunca viu? A Mãe parece não se incomodar com a fumaça... A Irmã-Jovem-e-Bonita sim, embora ninguém saiba que seu incômodo é mais pela felicidade inconfessa da Mãe do que pela contracultura do Pai.

Parece insólito, mas a única parte surreal dessa história é que o apresentador global está convidando toda a população para a “Corrida da Paz” no Complexo do Alemão - “refazendo o percurso de fuga dos traficantes...”

O Pai levanta os olhos e ri irônico, sendo o único ser humano da casa a notar a “complexidade” do evento. A Filha se irrita um pouco mais e a pobre criança confusa desiste de observar a Sagrada Instituição onde teve a desdita de nascer e vai brincar com o filho do vizinho, que enfrenta situação parecida, mas ninguém fala no assunto.

A Filha pinta as unhas de vermelho-sangue, com a perna direita dobrada sobre o sofá, de roupa curta e coxas a mostra sonhando a sensualidade da Mãe. Ainda é incapaz de saber que está muito longe de atrair as mãos famintas de pastores e o interesse vagabundo de sobreviventes decadentes da geração beatnik com suas unhas de puta amadora.

O Pai finge que não vê, mas entre uma frase e outra de sua preciosa literatura, observa orgulhoso a excitação da Esposa Dedicada pela porta da cozinha e pensa que é o resultado da trepada medíocre da madrugada.

Ao cair da noite, o Pai sonha de olhos abertos com uma alucinante corrida de mãos dadas com traficantes, policiais e a Janis Joplin no Complexo do Alemão. A Esposa Dedicada arruma os cabelos para o culto e veste um vestido discreto para as mãos firmes do pastor. A Filha-Jovem-e-Bonita já está nua e frustrada no quarto de um aspirante a homem que amarga mais uma ejaculação precoce, mas que tem lá suas qualidades (Freud? Nelson Rodrigues?): ostenta com virilidade intelectual uns livros amarelados de Ginsberg, Burroughs e (claro!) Kerouac que herdou de um tio desaparecido e produz a mesma fumaça ilícita cuidando para que a mãe não desconfie de nada.

O Filho Menor – pobre criança confusa – brinca na esquina com o filho do vizinho, alheio aos rumos da Sagrada Instituição onde teve a desdita de nascer.

E alguém fala no assunto na segunda-feira, em uma sala abafada de uma repartição pública com duas aspirantes a profissionais que abafam um sorriso cúmplice e lamentam não ter a inspiração nem o vocabulário de Machado ou Cortazar, para transformar em um bom conto, mais este típico domingo familiar.


Desconheço a origem da imagem.



domingo, 3 de abril de 2011

Dias e Prosas de Amelie


E a cada gole de “deixa pra lá”, o homem que só consigo classificar como deliciosamente anacrônico vislumbra um pouco mais dos mundos que se escondem por trás de janelas enfeitadas por flores e loucura.

Enquanto uma delas espalha fios de cabelos loiros pelo quarto fazendo uma escova, com a lingerie de oncinha sobre a cama e uma música sofisticada no rádio, a outra prende os fios escuros e maltratados numa presilha, calça seu allstar preto e acende um cigarro ao som de The Frames.

O homem deliciosamente anacrônico ri, pois ambas são loucas, mas sonham loucuras inéditas de Nelson Rodrigues e Gabriel Garcia Marquez com aquele toque literário que uma imprimiu na vida da outra e que agora resulta em carros batidos e planos sexuais mirabolantes em janelas distintas. Forasteiras em terras que não reconhecem seus erres, sozinhas em apartamentos pequenos demais para tantas expectativas e cidades grandes demais para tanta solidão na qual cada uma delas se reconhece e se descobre.

“A vida não é só festa, Amelie...”

Ora, a vida não é só Filosofia nem só Assistência nem só esse trânsito infernal na volta pra casa. A vida é uma noite, Amelie!

E aqui ou lá, em janelas distintas e loucuras inéditas, sob o olhar embriagado de um personagem de Rodrigues ou de Gabo, elas aprendem impunes que seus ossos não são de vidro e que sempre há uma lingerie ideal no fundo do guarda-roupas para este ou aquele final de semana de nostalgia, de amor, de coragem ou de pura diversão.


Por inspiração deste primor aqui

Foto de Violeta Niebla

segunda-feira, 14 de março de 2011

“Todo carnaval tem seu fim”


Parece que a cada momento é algo diferente... Um outro desafio que aí seria simples, haveria alguém ao seu lado com uma resposta pronta, com uma caneta nas mãos e uma risadinha familiar pra dizer que carnaval é assim mesmo... todo mundo comete excessos.

Aqui, pode ser que você encontre algo depois daquela subida forte – porque há sempre uma subida forte entre você e qualquer coisa de que precise.

Aqui, você sempre precisa de algo que não sabe onde está, ou que espantosamente não existe.

Aqui, não existe o muro das lamentações ou, na pior das hipóteses, você é o muro.

Por outro lado, aqui existe uma infinidade de coisas que você não sabia que existia e que nunca vai saber pra que serve. Coisas de uma capital...

Hoje, você ousa afirmar que todo mundo é louco numa capital, inventando coisas que não servem pra nada ao invés de inventar um bom muro onde se lamentar.

E você se apaixona por qualquer par de olhos grandes e cabelos parecidos com os teus...

Se apaixona e vai embora, deixando aquele par de olhos grandes no ponto de ônibus onde a solidão é uma merda e fica pensando que deveria ter ficado, que deveria ter falado “Olha, eu também não entendo a capital e também sinto falta do frio...”

De onde ela vem faz frio e seus olhos ficam lindos quando ela fala da saudade que sente...

E você pensa que aqui deve ser assim mesmo – voltando do trabalho todos os olhos são lindos de saudades de um outro tempo ou de um outro lugar. E, na fila do mercado, alguém tenta fazer com que seu realismo seja menos fantástico, mas você prefere beber sozinha...

“Bruna Surfistinha! Vamos ver?”

E você vai... Vai porque precisa de qualquer coisa que faça seu estômago esquecer que ele vai embora daqui a pouco e você vai ficar sozinha de novo nesta capital de merda. Perambula pelas ruas com a mochila pesada demais nas costas sem ter pra onde voltar, mesmo antes de saber que voltaria para uma janela arrombada e mais dois ou três pesadelos.

A sensação de não ter pra onde ir depois de três dias inteiros com ele e mais ninguém...

Você sai desse carnaval espantada com tanto carinho que até o mês passado ninguém sabia onde estava... Provavelmente, escondido depois daquela subida forte ou em algum lugar da gente que só se manifesta quando o vê na plataforma de desembarque pronto pra um abraço que ninguém sabia que poderia ser tão bom.

“Sorry, baby. Juro que não era pra gostar tanto assim do teu abraço.”

“Juro que queria saber a hora certa de acordar.”

E você só queria dizer que não foi por coragem que veio até aqui. “Foi o inverso, coração. Coragem seria ficar e mandar à merda a obrigação de vencer na vida.”

Mas, você não diz nada... Afinal, é carnaval e está chovendo. Ele está orgulhoso da sua “coragem”, suas pernas já estão se acostumando com tantas subidas fortes, você já não se lamenta mais, o realismo também é fantástico por aqui e vocês tem um curta para produzir neste feriado que logo acaba.


"Deixa eu brincar de ser feliz/deixa eu pintar o meu nariz"...

(Todo carnaval tem seu fim - Composição: Marcelo Camelo)


Tela: Jacek Yerka - 1952

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Flores de Luz


Naqueles dias em que já começava a se despedir da cidade, em uma manhã de chuva fina e sol, sentada em um ponto de ônibus na Guararapes com duas sacolas de mercado nos braços, observava a pichação com letras grandes no muro do outro lado da rua: “O amor é importante, porra”.

Enfeitava a luminária com flores de silicone sentada no chão do quarto e ouvia música baixinho. Nem dois anos aqui e foram tantas descobertas... Pensava na situação do autor da frase da Guararapes e no seu grito injuriado, talvez bêbado numa madrugada, talvez cansado de pensar no significado das coisas.

Apagava a luz do quarto e ficava admirando as flores iluminadas. Nem dois anos e até os muros da cidade já diziam que ir embora dói, mesmo com as promessas de felicidade em outros lugares, mesmo que a gente sempre soubesse que essa equipe multiprofissional iria se desfazer mais cedo ou mais tarde... Mesmo que a palavra “caso” já dissesse que haveria um começo inesquecível no sofá da sala, um meio surpreendente na tua cama e um fim precoce com quilômetros demais entre duas pessoas que não queriam viver um grande amor.

A luminária estava toda florida no fim da tarde... Encostada no guarda-roupas, pensava em começar a encaixotar algumas coisas, deixar a maior parte dos livros na casa dos pais por ora, levar só as roupas, sapatos e a luminária, como se fosse voltar logo e fosse precisar de poucas lembranças além do essencial e das flores de luz.

Pensava no que picharia em um muro da Guararapes nesta noite... O que diria pra cidade da qual se despedia?

Voltava a escrever e pensar nos aspectos práticos – era isso que ele faria. Perguntaria coisas aparentemente simples sobre a mudança e evitaria as palavras que indicassem que as pessoas sentem falta umas das outras sentado na cozinha, com os óculos sobre a mesa e o olhar parado em algum lugar desses últimos meses.

No entanto, ela estava sozinha no quarto olhando a luminária. Queria ser igual a ele – tão racional... Queria pensar no futuro profissional, nos “aspectos práticos”, nas intermitências da vida e na mentira que inventaram para acreditar que este episódio ainda não merece que este texto receba o mesmo título do livro que a levou até ele.

Queria inventar um título, um best-seller, um romance conveniente ou qualquer porcaria capaz de levá-lo até ela dessa vez – só pra variar um pouco. Porque, encostada na porta do guarda-roupas, fumando um cigarro e olhando as flores de luz, ela sabia que tudo ficaria bem e que coisas boas iriam acontecer com ela e com toda a equipe, onde quer que fossem morar... Mesmo que, lá fora, a cidade toda gritasse com seus muros e jardins, que ir embora dói.

Ela sabia que o futuro se anunciava bom, que a mudança traria tantos novos conhecimentos e que em breve iria se acostumar com o novo trabalho, iria fazer mais amigos, se comover com os gritos de outros muros, se apaixonar por outras cidades e talvez ele a visitasse algumas vezes no início... E ela também sabia que nunca mais haveria uma equipe multiprofissional igual a essa e que provavelmente não haveria um muro das lamentações no seu próximo ambiente de trabalho, nem uma pessoa tão desaforenta quanto a Farmacêutica no quarto ao lado onde quer que fosse morar. Será que um dia encontraria outro Fisioterapeuta que beijaria o próprio ombro ao se despedir só pra fazê-la chorar de rir? Será que lá haveria uma Educadora Física cantora de funk? Uma Enfermeira descontrolada? Alguém disposto a sentar com ela no meio-fio, embaixo de chuva pra tomar cerveja no saquinho? Faltou tempo pra tanta loucura... Faltou pouco tempo pra um último porre com a Regiane na Keiko.

E, por causa de tudo isso, ela pichou um lamento na Guararapes, gritando sua despedida com uma ou duas lágrimas no copo de caipirinha em homenagem a Psicóloga que ninguém sabe por onde respira...

Em homenagem a equipe multiprofissional, a esses quase dois anos de resistência e ao autor anônimo do grito injuriado em um muro da Guararapes.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Vamos?


Uma cidade de setenta e três mil habitantes próxima a Belo Horizonte. Muitas montanhas ao redor, ladeiras, subidas, decidas, sotaque de cadência bonita e engraçada, bares, cachoeiras, mil quilômetros de distância de casa, taxistas adoráveis, mais ladeiras, mais montanhas, exploração de minério, pessoas de todas as classes sociais dizendo “ocê”, queijo, doce de leite, mudança, distância, adaptação, “você há de chorar no início”, sim... e muito. Um atestado de higidez mental – posso chorar no início, doutor? Talvez não haja problema se você evitar as lágrimas no horário de trabalho. Meia hora e cento e cinquenta reais depois, um psiquiatra me declara mentalmente apta para exercer minha profissão em Minas Gerais ou em qualquer outro lugar do mundo para em seguida me explicar a beleza da imperfeição deliberada da mandala na parede de seu consultório. É mais um lugar de onde saio com a estranha sensação de que em Minas só tem gente tão encantadora quanto aquela mandala deliberadamente imperfeita.

Um concurso público como desculpa pra passear e a aprovação seis meses depois. O jeito é ir embora, juntar os livros e CDs na mochila rasgada e encarar o Serviço Social em terras mineiras, entre tantas subidas e decidas, onde todo mundo fala “ocê”, sorri, descobre em dois segundos que você é de outro estado e diz com confiança: “Ocê há de gostar daqui, branquinha”.

Temos pouco tempo para decidir se a vida continua aqui no Paraná, se recomeça lá em Minas ou em qualquer outro lugar que, de certa forma, terá sempre ladeiras, encantos e imperfeições.


Foto encontrada aqui

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

E você que não volta...


Usei você.”

O que?”

E se eu contasse pra alguém, mais uma vez, me perguntariam:

E você vai?”

Pois é... Pra Minas?

Feira Nacional do Livro? Esquece isso!

Morar? Não – dividir o aluguel.

Jantar? Não.

Mentira. É claro que vai.

E a terapia é pra dar jeito se for um desastre.

Gostamos de música. Um bom bar, cerveja...

Pra que o beijo de despedida?

Se eu contar, ninguém acredita.

Usei você... O que acha disso?

E você que não volta nunca!

Estamos juntos aqui...

Erótico ou obsceno?

Para janeiro: sorrir, falar, ouvir, agradecer e concordar.

Apenas por uma noite...

Ou durante dois anos?

O Fusca do vizinho incomoda, mas o vizinho...

Quer jogar truco?

Já é quase dez da noite.

Já é quase fevereiro.

Já faz quase um ano.

Aceita uma cerveja?

Opa! A minha é sem cianureto, por favor.”

Humildemente.