terça-feira, 29 de setembro de 2009

Mundo


Havia um Sujeito Levemente Esverdeado na esquina, uma Senhora Muito Magra olhando para as mãos no ponto do ônibus e uma Garota com uma grande mochila roxa encostada no muro com uma pequena Salamandra no ombro. As Formigas passeavam tranquilamente pelo meio fio e o Vento soprava calmo, indiferente, impertinente tentando irritar a Salamandra.
Havia um muro azul com frases bíblicas e uma Freira que andava apressada em frente a um ferro velho com seu hábito pesado escorrendo asco e virtude, roçando o chão poeirento e as Formigas despreocupadas.
A Salamandra olhou demoradamente para a Freira com expressão de divertimento. O Sujeito Levemente Esverdeado acendeu um cigarro e ofereceu à Salamandra.
Havia um Sujeito Levemente Esverdeado e uma Salamandra fumando na esquina enquanto a Senhora Muito Magra que olhava para as mãos rezava baixinho para que os Anjos parassem de beber e fazer barulho nas escadas à noite.
O Sol fazia buracos na superfície do dia e a Garota repreendeu a Salamandra por fumar.
O Tempo tocava piano para acalmar o Sol, os Pássaros voavam fatigados e as Flores sofriam de um leve transtorno mental característico das tardes quentes demais.
Os Carros corriam, as Mulheres choravam, os Homens vagavam e as Crianças fingiam que não sabiam de nada voltando escandalosamente das escolas enfadonhas com seus uniformes suados e suas mochilas grandes demais e seus cabelos despenteados.
Um Hippie pediu um cigarro à Salamandra que ficou desconcertada e olhou para o Sujeito Levemente Esverdeado que deu um cigarro ao Hippie e depois comprou uma pulseira de mandalas em couro.
As Formigas continuavam sua marcha descontraída e a Senhora que olhava as mãos levantou a cabeça e pediu ao Hippie um cigarro.
Ele disse que só tinha maconha.
A Freira parou no ponto do ônibus e olhou com dureza para a Salamandra, para o Hippie e para o Sujeito Levemente Esverdeado.
No jardim de uma mansão do outro lado da rua uma Mulher Lânguida chorava e dizia: “Oh, meu umbigo, meu umbigo...” enquanto seus Filhos cresciam alheios às lágrimas e ao umbigo da mãe ouvindo as histórias das Formigas que moravam no jardim e queriam fazer uma parceria com os Tatus para criar um partido anarquista ultra radical. Os Tatus ficaram preocupados e disseram as Crianças que as Formigas estavam em crise existencial.
A Salamandra saltou do ombro da Garota e foi pedir maconha ao Hippie, que sorriu para a Freira e saldou as Formigas Anarquistas.
Resolvi ir embora e, de longe, eu ainda ouvia a Mulher Lânguida chorar e repetir: “Oh, meu umbigo, meu umbigo, meu umbigo...”

sábado, 12 de setembro de 2009

Sobre Bruxas e Anjos


Era uma vez (outra vez...) uma pequena Bruxa chamada Roberta. Pequena, porém muito astuta - presidente do sindicato das bruxas, militante da desburocratização da maldade e da socialização da magia.
E também tinha uma Princesa neste conto, mas ela tinha umas taras estranhas por Anfíbios... nem vamos falar sobre ela.
A Bruxa Roberta vivia pela causa da bruxaria e sofria de insônia, até que, em um dia cinza no qual procurava um advogado para articular a instituição de um piso salarial para as bruxas, atropelou uma criatura descabelada que atravessava a rua distraidamente para ir à padaria. Roberta percebeu que aquele ser não deveria ser humano, pois era descabelado demais... Desceu do carro desconfiada, olhou o sujeito caído no asfalto e confirmou sua suspeita:
- Eis que eu atropelei um anjo!!! - gritou vitoriosa
- Ajude-me, por favor - sussurrou o Anjo Descabelado com o cotovelo todo estourado.
- Ajudo não, sou Bruxa. Ajudar não é meu departamento.
- Esqueça isso. Sou Anjo, mas vou foder com a sua vida se não me ajudar a me levantar. E garanto que foder com a vida dos outros também não é meu departamento.
- Você não consegue se levantar, e eu tenho um carro... vou acabar de matá-lo.
Então a Bruxa Roberta entrou calmamente no carro e acelerou para acabar de matar o Anjo Descabelado, mas as Fadinhas Desaforentas apareceram e levaram o tal Anjo, que ainda teve a pachorra de fazer um gesto obsceno para a Bruxa enquanto era carregado por aquela revoada de fadas (des)encantadas.
Roberta ficou furiosa, mas se lembrou que tinha outros assuntos para tratar e foi atrás do advogado. Ao sair do Sindicato, encontrou o Anjo Descabelado empoleirado sobre o capô de seu carro, olhando-a de forma petulante e desafiadora.
- Tem três coisas que eu gostaria de te perguntar: Por que é que anjo é tão descabelado, tão imbecil e por que cagou no capô do meu carro?
- Imbecis nós não somos, e nossos cabelos são assim porque nós voamos! Não dá pra ter cabelos arrumadinhos – isso só em filme. E eu não caguei aqui, foi uma pomba!
- E você é o que?
- Eu sou um Anjo!!
- Pra mim é tudo a mesma coisa. E agora me dá licença, porque eu tenho ojeriza do barulho das suas asas.
E a Bruxa Roberta foi embora, deixando o Anjo Descabelado empoleirado na mureta do estacionamento com aquele sorrisinho insuportável de quem não vai desistir tão cedo.
Sim... isso é um conto de fadas, e este Anjo Descabelado está apaixonado pela Bruxa Roberta.
Afinal, até mesmo as bruxas precisam de um anjo.
Naquela noite, o Anjo Descabelado entrou no quarto da Bruxa Roberta silenciosamente enquanto ela dormia e contou-lhe histórias de anjos velhos, diabinhos presos em garrafas e japoneses capitalistas que cobram a parte pelos copinhos enquanto ela sorria sentindo a fala cantada do Anjo acariciar seu sono. E, desde esta noite, todos viveram felizes para sempre...
A Bruxa (que nunca mais sofreu de insônia), o Anjo (que continuou apaixonado pela Bruxa apesar de todos os palavrões, discursos políticos e feitiços estapafúrdios), as Fadinhas Desaforentas (que também criaram um sindicato a exemplo das bruxas), a Princesa Pervertida (que casou com um Sapo chamado Eusébio) e até os Anfíbios (que ficaram livres dos assédios da Princesa).
Era uma vez uma Bruxa chamada Roberta e um Anjo Descabelado...

PS: Juro que este é o último. E o dedico à Roberta Figueiredo.