domingo, 22 de março de 2015

De nascença


Claudio Pereira dos Santos permanecia ereto no rio de correnteza leve, totalmente submerso, rígido e endurecido pela morte recente. Uma comunidade de algas verde-escuras de fios longos cobria cada centímetro de seu corpo esguio. As algas dançavam na densidade da água e Claudio continuava imóvel.
Sua irmã o alertara para os perigos de suas práticas amorosas e sabia que agora ele estava morto e coberto por algas dançantes em um rio claro à 13km como se fosse a carcaça velha de um barco inútil. Janice dos Santos Gusmão preparou o almoço do marido antes das onze e meia como toda manhã, depois lavou as mãos que cheiravam a alho, colocou a mesa e saiu de casa com expressão grave.
Um ou outro vizinho tentou chamar-lhe a atenção para saber notícias do desaparecido:
 - Está no rio, seu Clóvis. Vou buscar aquele desmiolado antes que vire comida de piranha.
Encontrou-o duro feito pedra. Entrou no rio vestida e, com a mesma agilidade com que descascara o alho para o almoço de Gusmão, descascava o irmão das algas verde-escuras enquanto dizia de suas muitas tarefas diárias, dos problemas com as crianças, da doença da mãe, das cachaças do marido e...
 - e você, Claudinho, que não cria juízo!
O tom enérgico de Janice foi se perdendo na correnteza leve do rio claro, na maciez das algas lânguidas, na frescura da água viva e, minutos depois, ela arrancava as plantas aquáticas com suavidade e ternura, falando ao irmão morto sobre as molecagens das crianças e a carência triste da mãe. Sorriu ao ver a marca em riste entre as sobrancelhas grossas do defunto tomar um tímido contorno róseo. Aquela mancha vermelha de nascença desaparecia na pasmaceira do dia-a-dia, mas marcava com um rubro brutal a testa de Claudio na hora do ódio ou do amor, do choro ou do riso, do medo ou da coragem.
A marca ficava cada vez mais vermelha, anunciando que reaparecia no afogado a animação de vísceras e artérias e conexões neuroquímicas e funções gastrointestinais e fluxos linfáticos e a cor dos olhos e a boca entreaberta para constranger os pulmões alagados com o cheiro fresco do rio vivo. Vivo.
No caminho de volta, Janice aplicou-lhe todas as repreensões, culpou-o pela condição da mãe -  coitadinha, que só adoece de preocupação - deu-lhe ultimatos de se empregar na usina, encontrar uma moça boa para casar e parar de fornicar com mulher de cabra bem armado por aí.
Claudio ouvia calado, caminhando atrás da irmã, de cabeça baixa e olhos envergonhados.

Despediram-se na entrada da cidade. Claudio abraçou Janice como quem se afoga. Janice relutou, mas repetiu, por fim, o gesto infinito com o qual se unia ao irmão desde tempos imemoriais: beijou-lhe a marca viva que carregava encarnada entre as sobrancelhas grossas.

sábado, 26 de julho de 2014

O defeito da esquerda

Quem deixou a porta aberta?
Esqueceram de desligar o gás. Confirmou por engano. Assinou sem ler. Dormiu quase o tempo todo. Pensou que estivesse pronto. Perdeu o sono, o ônibus e as contas.
Dizem que ficou louco. Feito Sartre, um viajante sem bilhete. Atravessou a vida por engano e guardou tão bem os traços do destino para não perder que esqueceu onde, em qual gaveta, uma pasta qualquer cheia de outros manuais velhos e pouco instrutivos.
Saiu sem avisar, andando rápido para não flagelar a perna ruim. Tentou documentar os anos errantes com um romance nunca acabado que rabiscava no fundo de restaurantes insalubres do interior. Enviou alguns capítulos pelo correio à um escritor do sul que tentou fazer chegar-lhe a resposta conclusiva de que se tratava da pior tentativa literária dos últimos tempos, mas a carta nunca o encontrou.
Uma noite de outubro de 2008, depois de dirigir quase doze horas ininterruptas com muita carga, tive a impressão de vê-lo atravessar um cruzamento melancólico da entrada de uma cidadezinha ao norte. Entrou em uma dessas casas de luz amarela e janela de madeira, pisando o degrau com firmeza para levantar a outra perna em um movimento brusco do corpo. Parece que mancava mais.
Aquela noite não dormi, apavorado, e quis viajar mais doze horas direto para casa.
Minha mãe sempre olhava sua foto na parede da cozinha com um certo embaraço enquanto coava o café:
 - Nem a bengala ele levou...
Essa frase combinava com o cheiro nostálgico que subia do coador de pano e com o suspiro constrangido que subia da minha mãe em seu casaco de lã vermelho. Mas não combinava com um homem manco que atravessava o cruzamento melancólico de uma cidadezinha ao norte, por isso, nunca contei a ela.
No começo eu pensava em procura-lo até o fim do mundo, pegá-lo pelos cabelos e arrastá-lo de volta com toda a autoridade conferida a mim pelo papel extenuante de consolar minha mãe. Depois, resignado até certo ponto, fiquei dramático: fantasiava encontra-lo feliz e gordo, bem vestido e amado e, num ato de derrota e abandono, apenas entregar-lhe a maldita bengala.
Mas, desde que comecei a trabalhar com o caminhão, já não o procurava, embora pensasse sempre que iria encontra-lo casualmente rabiscando seu romance ruim em um desses restaurantes onde as vezes faço algo parecido com uma refeição.
Em janeiro do ano passado, encostei em uma lanchonete modorrenta da insólita cidade de Monjolos, no interior de Minas, com um calor dos infernos a torturar a todos, amaldiçoando o sol e a ausência total de uma brisa que fosse. Então, senti o minuano da serra invadir meu estômago embrulhado quando vi um homem de costas cuja altura oscilava ao andar, diminuindo ao pisar com a esquerda, com um início de calvície discreta, entrando no banheiro de divisória precária aos cinco metros de mim. Eu poderia entrar no banheiro, arrebentar portas e descobri-lo esvaziando as tripas em um vaso imundo. Poderia espera-lo em frente a pia antiga de ferro e cumprimenta-lo com a naturalidade de quem reencontra um companheiro de estrada. Poderia ficar sentado na cadeira de lata com meu prato de arroz, feijão e bife de porco para vê-lo sair mancando e segurar o canto da divisória assustado ao parar repentinamente por me ver e falsear o passo com a esquerda.
Mas o calor de Minas, o frio do estômago, aquela divisória, as horas no caminhão e o cheiro de cebola frita não me permitiram nada. Os sons foram ficando muito distantes, as mãos dormentes, os olhos pesados e a lanchonete inteira foi se liquefazendo em volta do meu desespero. Olhei até o último segundo para aquela divisória antes de desmaiar sobre a mesa de lata e ser socorrido por companheiros de estrada que riam de minha palidez e faziam piada sobre o poder mórbido da refeição servida.
Nunca vi quem saiu de traz daquela divisória em Monjolos. Vasculhei-o e as proximidades, perguntei aos quatro cantos, percorri ruas em total descontrole seguido por companheiros preocupados que afirmavam que eu havia enlouquecido igual ao meu irmão.
Voltei para estrada e depois para casa. Rodando os óculos na mesa enquanto minha mãe coava o café, acompanhei seus olhos para a foto e, pela primeira vez em muitos anos, sua lamentação não morreu em um suspiro:
 - Nem a bengala... Ele nunca ficava sem ela. Era o que diferenciava vocês dois... Ninguém saberia dizer quem era um e quem era outro se não fosse o defeito da esquerda.
Duas semanas depois, ligaram de um centro de atendimento qualquer de algum lugar de Minas Gerais.
Morreu sem perceber.
Providenciei tudo para o transporte do corpo enquanto minha mãe chorava agarrada a maldita bengala.
No velório, era eu quem coava o café com uma ou outra tia sádica que comentava a semelhança do morto comigo no caixão.

 - Vocês eram iguaizinhos. Não fosse o defeito da esquerda...

terça-feira, 22 de abril de 2014

Subsolo

Depois de passar uma quinta-feira santa em trânsito, presa em aeroportos e engarrafamentos de dois estados, cheguei exausta e apreensiva à um refúgio localizado a 13km depois do fim do mundo. Em mim só havia cansaço e uma felicidade triste ao ver a cama de madeira com lençóis limpos e toalhas macias. Sem sinal de celular nem internet, até havia uma televisão, mas preferi o sono como promessa de recuperação para o dia seguinte.
A sexta-feira santa começou ensolarada e firme. Trilhas, guia, geologia, cheiro de mato, expectativas e uma fenda despretensiosa pela qual me espremi e mergulhei com meu humilde capacete luminoso.
No início tudo se sintetizava em umidade e escuridão. Havia uma certa ansiedade em movimentar a cabeça para todos os lados para que a lanterninha sobre minha testa pudesse me apresentar aos locais mais seguros para colocar os pés, não bater a cabeça, encolher os ombros, me curvar e me curvar mais um pouco até me sentar e esticar as pernas e me arrastar com o nariz muito próximo de uma superfície úmida e assustadoramente dura.
Visualmente, tudo ficou muito restrito. Eu estava dentro de um túnel de pedra onde não cabia muita coisa além do meu corpo desajeitado e contraído. Por algum motivo instintivo, procurei me concentrar nos sons, que se resumiam a minha respiração, aos corpos que se arrastavam a minha frente e a água em grande quantidade fazendo o trabalho milenar de continuar escavando a pedra em gotas ou como um turbilhão.
Foi neste momento que parei para respirar e sentir. Vi fumaça saindo da minha pele, senti as gotas que molhavam tudo em mim, senti a frieza da pedra que me envolvia em um abraço aterrador e a sensação física de que eu estava órfã. Havia uma presença incrível de morte na escuridão e no gotejar. Na superfície as pessoas deviam estar ouvindo música, dirigindo, brigando, comendo, andando, existindo... Ali, imobilizada por um chão que me encobria, a existência se restringia a respirar, ouvir e tentar enxergar um inseto pequeno e parecido com uma aranha que se escondia da minha luzinha imbecil. Na superfície, o parente de aranha poderia não ser companhia agradável, mas embaixo da terra eu o elegi como cúmplice e anfitrião. Habitante exclusivo daquela dimensão paralela, ele parecia apenas se exibir para os visitantes como exemplo de vida subterrânea.
Ao me arrastar mais alguns centímetros senti que a terra abandonava minhas pernas. Meus pés, suspensos, ainda não podiam encontrar onde o chão se escondia, mas minhas pernas já sentiam algo como ar se movimentando com euforia. Mais um pouco, e alcancei a galeria pequena e parcialmente submersa que ampliava o alvoroço da água descendo em fúria. Espuma branca escandalosa que subjugava a rocha para se transformar logo à frente em uma piscininha calma que escoava por aqui e por ali, pingando, esculpindo, acarinhando e rindo dos meus olhos arregalados de susto e encantamento.
Lá em cima as pessoas continuavam vivendo, alheias ao inseto amigo, à força da água, à escuridão do mundo e à minha orfandade. Na superfície as pessoas existiam alheias à morte que nos acompanha no gotejar subterrâneo.
Ao emergir, o sol agrediu meus olhos e o vento recebeu meus cabelos com um afago. Todo meu corpo doía, mas havia algo de abandono que doía um pouco mais.

Na noite fresca dessa sexta-feira santa, enquanto eu esticava os músculos doloridos das pernas, o Jornal Nacional (estúpido e atrasado) noticiou: Gabriel García Márquez morrera no dia anterior enquanto eu me irritava com aeroportos e engarrafamentos. Horas antes, o subsolo, com um abraço afetuoso e condolente, já havia comunicado minha orfandade.     

sábado, 29 de março de 2014

Fábula francesa

Naquela tarde quente em que se encontraram com tanta solenidade, o mundo se transformara todo em músicas de notas simples. Descobriram que todos os afetos podiam ser afáveis e emitiram um pedido de desculpas constrangido a si mesmos pelas agressões veladas que aceitaram em esforços passados de serem politicamente corretos, graves demais ou semelhantes a alguns exemplares afetados da humanidade.
Definiram os termos da mais completa simplicidade de suas relações e elegeram o carinho gratuito como única forma aceitável de tratamento entre pessoas que se abraçam (mesmo que eventualmente).
Discutiram longamente a base desse não-contrato entre seres imaginários que desvendaram um jeito real de existirem em um mundo cão.
- Seremos afetuosos, cultos e distraídos.
Como seres naturais, estavam dispostos a não compreenderem a complexidade dos impulsos de afastamento, hostilidade ou resistência, salvo em exceções bem delimitadas de opressão, mediocridade ou grandes oscilações hormonais. De resto, seriam leves como os movimentos de mãos que regem uma orquestra urbana de poesia e sexo.        
As diretrizes desse programa perturbador foram cantadas em ritmo de valsinha com um leve sotaque francês por três vozes suaves acompanhadas por instrumentos clássicos incontestáveis:
 - Um convite feito com um fio de voz.
 - Um pedido objetivo.
 - Uma porta entreaberta.
Não havia impedimentos, orientações ou processos dolorosos de descoberta ou crescimento. Seriam para sempre pequenos, hedonistas e plenos de amor...
 - ... e sexo.

Estava instituído o estado permanente de empatia e encantamento entre seres imaginários que se encontram em um domingo a tarde deste mundo cão.


Para K. 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Das não-personas

Rabiscou uma guria magrela no  verso e a viu pedindo desculpas a si mesma. Quem seria essa pobre criatura que o incomodava a esta hora da madrugada? Qual seria seu conflito moral? Que roupas usaria? Que filmes gostaria de ver?
Ninguém viria à sua casa a esta hora. É óbvio que estava se escondendo...
Mas também não fazia muito sentido se esconder onde se cria. No papel, a gente vira gente.
Talvez tenha se perdido. Acabou caindo na folha em branco de um maluco insone, acendeu um cigarro, tomou um pouco do café e ficou se desculpando com frases pela metade até pedir sem jeito:
 - Deixe-me ficar.
Ficou. Ficou, antes de saber se ele deixava. Dobrou os joelhos e apoiou o queixo parecendo um pouco aliviada, mas ainda triste.
O dono do papel queria seu nome, seu conflito moral e duas ou três preferências.
 - Do resto eu dou conta.
O problema é que ela não tinha nome, nem moral nem conflito. Tampouco saberia dizer de algo que lhe agradasse.
 - Dá pra criar seu resto com isso?
O escriba coçou a cabeça... A garota era encrenca e não daria nem um conto. Ajeitou-se na cadeira, recolheu uns papéis da escrivaninha como quem está organizando o ambiente, imbuiu-se de uma expressão sábia e compreensiva e começou uma conversa muito sutil.
Ela riu sem alarde:
 - Por que você está agindo igual terapeuta?
Sentiu-se um imbecil, mas em seguida se deu conta da pequena vitória: já sabia que sua personagem não era burra nem dada à relações medíocres.
 - Por exclusão, talvez dê certo. Vamos descobrir quem você não é.
Ela coçou a cabeça... O escritor era encrenca e não daria pouso de graça. Derrubou a cabeça sobre os joelhos e fechou os olhos.
 - Deixe-me pensar...
Ele tentou oferecer uma poltrona de design pós-moderno e cores ousadas para que se sentisse confortável -  ela rejeitou como se fosse uma cadeira elétrica. Ele recuou para um aconchegante divã neoclássico de tendências sóbrias e tons pastéis, mas ela suspirou com tanto enfado que o convenceu a ceder-lhe simplesmente a única cadeira que ainda existia na cozinha.
Ela se sentou inexpressiva, com as pernas cruzadas sobre o assento gasto e a mão segurando o queixo enquanto ele esperava.
 - Onde você vive?
 - Não me lembro.
 - Você sofreu um acidente?
 - Muitos.
 - Do que você está se escondendo?
 - Dos traços de personalidade que se manifestam como uma resistência difusa em satisfazer expectativas de relações interpessoais ou envolvendo a execução de tarefas, caracterizados por atitudes negativas indiretas e oposição velada.
 - Todos estamos, querida...
Ela deu de ombros, ele deu um trago e tentou de outra maneira:
 - Você tem 26 anos, não estuda, é pobre, trabalha em um restaurante no centro velho da cidade. As vezes vai trabalhar de bicicleta, mas nunca foi assaltada...

Mora sozinha com um cachorro chamado Jairo em uma casa pequena e sem cor. Alimenta-se mal, transa com frequência e acabou de descobrir que está grávida de um sujeito meio calvo chamado Jairo que conheceu mês passado no ponto de ônibus. Não gostou dele, mas resolveu convidá-lo para um café porque seu cachorro ia gostar de conhece-lo.

 - Enfim, a perspectiva era literária e você transou com o sujeito enquanto o Jairo comia o resto da esfiha fria que ninguém quis.
Ela suspirou de novo, mas em seguida mudou a expressão para não ofendê-lo.
 - Eu poderia apenas ficar?
 - Não. Você precisa existir.
 - Tenho 26 anos, não estudo, não tenho grana, trabalho em uma lanchonete na parte caída da cidade, para onde as vezes vou de bicicleta para economizar... 

Divido aluguel de uma casa pequena e sem cor com um frentista chamado Clóvis. Ele fuma maconha e come várias mulheres. Coloco fones de ouvido todas as noites para não ouvi-las gemer...

 - Desculpe, não pretendo escrever sobre um “Clóvis, o viril”.
 - Merda.
 - A senhorita...?
 - No mês passado fui estuprada quando voltava para casa de bicicleta e talvez esteja grávida, ou com HIV, ou as duas coisas.
 - Trágico demais, não?
 - É.
 - E o Clóvis?
 - Viril.
 - E agora?
 - O que?
 - O que você vai fazer?
 - Sei lá. Você disse que o resto era contigo.
Ficaram em silêncio por algum tempo. Ele nunca seria um bom escritor e ela definitivamente não nascera pra grande personagem.
Ela fumou e ele tentou escrever até as cinco da manhã. Depois dormiram, depois voltaram, depois viram um filme do Bergman e comeram comida chinesa. Saíram para beber em um bar do outro lado da rua. Ele a fez usar uma camiseta branca ridícula e lavar os cabelos. Imbuiu-se do mais pleno comportamento de resistência difusa em satisfazer expectativas de relações interpessoais que um mau escritor é capaz.
 - Você é a única mulher que não me rende sexo nem literatura.
Adormeceu sem perceber, amanheceu sem vontade e passou o dia a procura-la em seus rabiscos deprimentes de não-inspiração ou em seus parágrafos tristes de escritor medíocre.
Dizem que, 10 anos depois, foi encontrado morto nos fundos de um restaurante da parte velha do centro, abraçado ao manuscrito de um dos maiores romances da literatura contemporânea, sua única e inestimável obra: Passive-aggressive – onde contou com maestria a belíssima história de uma jovem de 26 anos que descobriu a maneira exata de não ser.




Desenho: Marcos Yuji 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Um começo que não veio*

Antes era a inércia. Depois ficamos mais fortes, fugimos, voltamos e optamos pelas relações interpessoais saudáveis. Teve terapia, bom senso, atividade física, amizade verdadeira, comedimento, respeito e solidariedade. A estabilidade nem era tão ruim assim. A sanidade mental se transformou em um reino confortável e simpático onde confraternizávamos com um estilo sofisticado de abraços plenos de sensibilidade que parecia amor. Acordamos transformados em seres tranquilos que viajam juntos, se alimentam bem e bebem com moderação enquanto conversam amenidades. Rondava-nos um abismo volátil que se liquefazia em copos quase limpos. As vezes ficava um pouco escuro e essa quase-escuridão era boa. A nostalgia, as angústias, os medos e nosso existencialismo afetado nos cumprimentavam tímidos, pedindo espaço na mesa, mais um copo, por favor... Perdíamo-nos – apenas temporariamente – depois tomávamos um banho, ouvíamos músicas sutis, peças de teatro, a arte nos salvará de todo mal, amém, outro corte de cabelo e o bom comportamento se reestabelecia com louvor. Nosso assunto era trabalho, teorias, ideologias, atualidades e bons roteiros turísticos. O bar fechava as portas para nós e íamos embora com a frágil sensação de que o equilíbrio era a receita para uma boa noite de sono. Resguardados que estávamos por um universo cuidadoso, vivíamos a leveza da semiconsciência impune enquanto nada – absolutamente nada – acontecia. Mas a vida não permanece linear nem no mais perfeito ecossistema. Não que fosse tédio, mas nós sempre soubemos que em algum momento mandaríamos tudo isso à merda. Pedimos outra saideira, mudamos o rumo da prosa, choramos e nos armamos de coragem. Que perigo... Não temos certeza, mas parece que alguém tentou avisar “cuidado, coragem não presta”. O discurso era ruim e a cerveja era gelada. A realidade foi ficando escorregadia, a cadência de nossos passos instituiu um destino aparentemente certo e o caos usou a iluminação exata para se instalar numa varanda ansiosa deste verão apocalíptico. Decretamos oficialmente o fim do mundo. Decretamos insistentemente durante uma noite inteira a morte da poesia e a instituição imediata de nós mesmos como entidades soberanas do amor. Dois dias depois, a destruição era aterrorizante. Balde, água, escova, vassoura, pano de chão, desinfetante, tirar as cortinas, lavar as almofadas, esfregar as paredes, o chão, as cadeiras, trocar a lâmpada e o resto vai pro lixo. Limpamos a cena do crime. Acordamos transformados em seres imaculados pela manhã.

*Tristeza não – Metá metá



Imagem: Obra de Salvador Dalí inspirada na Divina Comédia de Dante Alighieri

domingo, 9 de setembro de 2012

Espaço público


Eles sabiam exatamente onde queriam chegar até o momento em que se viram absolutamente fatigados em uma cidade barulhenta do sul ou do leste ou totalmente perdida no fundo do medo de cada um. Nunca mais voltaram. Dormiram o sono alheio de cimento e lua, comeram os restos do banquete real com as bocas cheias de espuma da loucura inventada por outros escribas, de outras linhagens, mortos de outras fomes e duas ou três satisfações de guerras antigas. E anoiteceram e amanheceram procurando mais uma lua e mais um sol, e choveram cansaços, mijaram mentiras, mastigaram nostalgias e cozinharam um esquecimento salgado de lágrimas sórdidas, feijão com arroz, cachaça e adeus – nunca mais voltaremos porque somos fortes. Verdadeiramente fortes. Guerreiros sagrados do amanhã. Ouviram causos e cantigas de roda picados pelo encantamento da morte e sorrisos e estrelas coloridas. Acordaram sem cabeça, condenados a um mundo para sempre sem silêncio como castigo por terem engolido aqueles comprimidinhos em uma festa tão estranha; porra, me deixa dormir; cefaléia, estado febril e trouxeram a paz de volta debaixo de pancadas os gloriosos guerreiros sagrados do porvir com suas olheiras profundas e seus maus-humores de uma sede milenar. Viram os homenzinhos que não nasceram de suas mães mas que brotaram das profundezas da terra criarem um mundo de histórias inventadas no alto da montanha mais alta em madrugadas de violão e abraços e romantismos anacrônicos isentos de sobriedade e de onde você veio, meu bem; do sul; das profundezas do chão eu vim, sabia; do fundo da terra, brotamos e viramos essas luzinhas que tu estás vendo lá embaixo; morrendo no meio do caminho; aos pedaços – que coisa horrível, meu bem... mas, de onde você veio mesmo? Não importa! Importa é para onde vamos; para onde olhamos; olha! um fantasma sentado no capô do carro; quer maconha; quer ver as luzinhas lá embaixo e levantar as saias das moçoilas distraídas. Não tememos nada porque somos corajosos. Verdadeiramente corajosos. Guerreiros sagrados de merdinha nenhuma. Abraçaram-se e choraram um chorinho coletivo de frio e saudades; do nunca mais voltaremos porque não sabemos como voltar; fugindo dos fantasmas maconheiros que passeiam pela montanha mais alta resmungando que parem-com-essa-porra-de-violão-que-isso-já-me-encheu! E se encheram de luz e de fumaça e de música e se fizeram felizes e se amaram e contaram um ao outro histórias infames que todos já conheciam apenas pelo prazer de ouvi-las das bocas uns dos outros; lamentando versos pela metade porque ninguém lembra a letra da música e ninguém sabe onde o sol nasce e se deram as mãos e voaram mandando à merda o fantasma de suas solidões cem vezes alardeadas na praça central. Guerreiros profanos de uma madrugada qualquer.


Tela de Jacek Yerka

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Para a criatura mais punk do mundo


Querida amiga,

Resolvi te escrever uma carta, pois estive pensando na nossa última conversa e fiquei muito preocupada.
Mentira.
Resolvi escrever porque eu quis mesmo.
E já sei das suas críticas para a minha entrada:
 - "Querida amiga"... Que porra é essa?
Tudo bem. Vamos de novo:

Prezada,

Não.

Salve,

Brincadeira. Não é um manifesto político, juro.

Criatura,

A carta é porque me espanta essa sua fuga desesperada. Não importa em que direção, mas os últimos acontecimentos que você me relatou deixam claro que você está tentando fugir do limbo.
Começou com essa sua obsessão súbita por crucifixos.
(obsessão-sim-senhora!)
No início lá, pendurado em um batente qualquer. Depois assustadoramente mais próximo, balançando, penetrando seu cotidiano... (Ok. Isso foi baixo).
E eu te pergunto: Tentativas inconscientes de espiritualização?
Pois é, não deu certo...
(Ainda)
E você, ao invés de voltar para o ponto certo, descambou em uma descida alucinada e ultrapassou todos os limites da decadência.
Se estivéssemos no bar agora, eu certamente trocaria o cigarro de mão, seguraria seu braço e pediria em tom dramático:
 - Não nos abandone! Fique conosco... Não vá em direção à luz, nem à escuridão.
Aqui temos aquela luz amarelada, poética e sutil.
Aqui nos lamentamos e nossa lamentação é uma arte.
Arte impossível sem álcool...
Essa arte que cultivamos com tanto cuidado e disciplina para não escorregar nas esquinas da futilidade. Nunca lamentamos a falta de dinheiro ou de auto-estima (isso é fútil) - lamentamos a hostilidade do cotidiano de pedra, sem poesia, amargo, cheio de pessoas insensíveis à causa... Que causa? A nossa, oras... O limbo. Nossa melancolia sarcástica e sabedoria indigesta ameaçadas pela felicidade gratuita.
 - Fique com Deus.
 - Obrigada.
Respostas possíveis, baby.
Não desista. Não se abstenha. Você é uma inspiração para mim!
Não faça pilates nem terapia. Mas também não abandone os bares insalubres e os escritores malditos para ficar sem banho na frente da TV. Não leia Augusto Cury, mas também não apele para Virginia Woolf, please...
Enfim, em breve estarei aí para me desfazer em drama mexicano para que você volte para o nosso submundo de ressaca e afetação intelectual. E se isso não der certo te dou uns tapas porque já perdi a paciência contigo.

Com amor,

Ana.


PS: Amém.