terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O que falta é espaço


Ela olha desconsolada para a bagunça do seu quarto. Livros, sapatos, CDs, bolsas e sentimentos inadequados espalhados pelo chão. E, no final das contas, tudo isso desaparece. Menos os sentimentos inadequados. Ela precisa arrumar um lugar onde guardar tantas coisas inúteis e os livros e CDs (que são infinitamente preciosos). Precisa descobrir um canto pra estes "estranhos objetos" (os sentimentos inadequados) porque tentou deixá-los como que por descuido num quarto de hotel barato, mas olhou pra trás no último minuto, enfiou tudo na mochila e trouxe de volta tanto peso. Tentou levá-los para terras de colonização alemã e dá-los a um capilé, mas lá a questão do espaço é ainda mais complicada porque aquela gente está cheia de amores, compromissos, responsabilidades e pessoas. Definitivamente, lá não cabe. Gostaria de doar um pouco dos livros à biblioteca municipal, mas é incapaz de fazer isso pois gosta demais deles. Precisa comprar uma cômoda e organizar tudo pra ver se encontra sua carteirinha de pós-graduanda que tem que estar em algum lugar por aqui. Se não precisasse dessa merda, provavelmente estaria em todos os lugares por onde ela passa. Gostaria de saber o que fazer com tudo isso e enterrar a má notícia natalina que acabou por se quebrar perto da cama e agora fica espalhando um pó meio deprimente por todo lado. Tem 23 anos e ainda não aprendeu a guardar nada. Tem 23 anos e ainda não aprendeu que não se deve cultivar sentimentos inadequados para os quais não existe espaço na face da terra.


Tela de Edward Hopper

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

É Natal


Eu vos agradeço por vossa mediocridade.
Sim, pobreza é um defeito genético e o-por-tu-nis-mo é uma virtude aqui... no país das maravilhas. Parabéns pelo seu esforço e pelas oportunidades que forjou neste mundo tão belo e azul.
Mas, é Natal, sejamos bons e solidários com aquele sujeitinho acomodado que pede uma moeda no sinal. Tenhamos pena das criancinhas que têm fome à noite porque seus pais não quiseram dar-lhes uma vida digna ou não puderam porque são geneticamente des-pre-vi-le-gi-a-dos. Tudo isso é mais indigesto do que esses assuntos microscópicos pra mim.
Porém, eu vos agradeço por este texto e por esta náusea que me sobe a garganta e por este gosto amargo de repulsa por todo este pensamento pequeno-burguês que, além de tudo, se legitima em Deus.
Nosso Deus todo Poderoso que tem um plano para cada um de nós, que fez o mundo assim: com alguns ricos, um montão de pobres e a classe média no meio fazendo o paraíso feder um pouco mais. Que a cerveja nunca nos falte, que a inteligência não nos abandone, que nosso status nunca caia, que nossos carros nunca sejam roubados, que as etiquetas nunca passem despercebidas, que saibamos sempre achar o caminho de volta, pra fora desse mar de exclusão e misérias que nos diverte como um espetáculo circense.
Que nosso Deus Todo Poderoso nunca nos permita errar a nossa parte do texto.
Dai-vos graças por vosso QI!
Louvai o sistema capitalista e suas toneladas de oportunidades.
Perdoai os indigentes e as crianças esfaimadas. Eles sabem o que fazem sim, mas... sejamos todos misericordiosos a semelhança de nosso Pai.
A justiça divina se faz em nossos corações para que possamos viver em harmonia neste mundo de paz e igualdade.
[Desculpem, eu sou contra a harmonia... Prefiro o conflito, o confronto, a revolução, a transformação. Se Jesus Cristo não fosse um revolucionário teria sido complicado criar toda aquela confusão que resultou na maior prova do amor de Deus pela humanidade, lembram-se? Não tem importância. Outra cerveja, por favor!]
Isso não estava no script.
Sorria e seja cordial, meu bem. É uma luta tão inglória quanto todas as outras que você travou ao longo dos seus 23 anos de vida. A única diferença é que aqui você pode se divertir e isso vai te render um texto razoável amanhã.
Eu sei que isso é terrorismo e, na verdade, meus senhores, essa idéia me agrada bastante.
Este confronto de idéias é o que mais me excita. Isso é a total ausência de harmonia e vejam o quanto é bom. Essas pausas constrangidas na sua fala representam o caos que você teme, pois te põe vulnerável e te expõe ao mundo desconhecido de pensamentos diversos, alheios, extremos, opostos, avessos.
Ah! Como somos imaturos se achamos que aquilo em que acreditamos é uma verdade absoluta, imutável, gravada em pedra feito mandamentos mortos de um deus xiita.
Que Deus horrível nós criamos para esconder nossas fraquezas... Isso sim é lamentável. Deus deve estar puto com a imagem que andamos criando Dele por aqui.
[Desculpem de novo... Sei que eu não deveria dizer que Deus está "puto". Acho que este termo não é adequado para eu me referir ao estado de espírito do Todo Poderoso].
Ah! Eu vivo fugindo do script.
Nem com toda fé do mundo eu consigo acertar a minha parte do texto!
Oh, Pai Todo Poderoso – fazei-me educada, cordial e dai-me discernimento para acertar o texto nesta peça tragicômica onde eu represento um delicado fantoche com mãos sedosas, sorrisos meigos, olhares lânguidos e pretensões terroristas.
Amém.


PS: E que a trilha sonora seja razoável.
Amém de novo.


Feliz Natal pra todo mundo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Processo inflamatório


E essa dor que não passa.
Nem meus pés eu consigo lavar.
Não acredito que sou capaz de permitir que a minha cabeça faça isso com o meu corpo.
Mente e corpo doentes e estagnados.
Andar dói. Abaixar dói, levantar, sentar, ficar em pé... Tudo e qualquer coisa faz doer.
Menos deitada fitando o teto do quarto e cantando sozinha todo o repertório da Legião Urbana enquanto a Chica arranha a porta querendo fazer um dueto.
Nada está bem. Tudo está errado.
Como é mesmo o finalzinho de Eduardo e Mônica?
O teto branquinho. O barulho do ventilador. As pernas esticadas e o corpo reto.
Assim, quase não dói.
Sede. A geladeira tão longe. E essa dor miserável voltando ao me levantar.
Mente. Corpo. Nada funciona bem.
Antes eu conseguia lavar meus pés e me lembrava da letra inteira da música.
Mais uma injeção?
Ortopedista. Neuro. Raio-X. Qualquer coisa. Eu só queria que parasse de doer.
Não é nada. Foi de lavar aqueles tapetes naquele tanque meio baixo.
Foram essas madrugadas, esses pesadelos, essa tensão. Fórum, café da manhã, almoço. Como assim, sem frutas? Comissão de alimentação. Precisa de CI para utilizar a copa do HU! É brincadeira...
Vamos rever nossos objetivos aqui.
Vamos rever tudo: projetos, prioridades, caminhos, escolhas, sentimentos, a cor do teto, dos cabelos, do lago, da vida...
Ah, Renato Russo, “há tempos são os jovens que adoecem.”
Esses nossos sorrisos enferrujados, nossas lágrimas sem brilho, nossos olhares pétreos, nosso desdém por nós mesmos.
Estamos todos fragilizados, por isso, vamos nos abraçar.
Melhor não. Preciso ficar deitada até sarar.
Cinco chamadas não atendidas.
Inútil retornar.
“Você está melhor?”
“Não. Estou péssima e não consigo nem lavar meus pés.
Estou revendo quase tudo, já que mal consigo andar.
Não se preocupe, é um mal passageiro.
Já, mãe... injeção e repouso.
Tô cantando Legião Urbana e olhando pro teto.
Posso estar enlouquecendo.
Deitada não dói.
É só um processo inflamatório.
Não nos preocupemos.
Vai passar.
Logo desinflama, mãe.”
O corpo e a mente.