sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Esquecimento


Estou ouvindo uma música qualquer quando ele aparece.
Distraída. E, de repente, percebo aquele bichinho no canto do armário. Saldo-o.
Responde-me com um sorriso tímido...
Tenho a sensação de que já o conheço.
- Quem é você? – pergunto despretensiosamente.
- Sou um pobre animal abandonado. Quer me acolher?
- De onde você veio?
- Não me lembro.
- Tenho a sensação de que já o conheço.
- Nunca estive aqui.
- Mostre-me os dentes. – peço desconfiada.
- Não posso.
- Por quê?
- Porque dói.
Olho-o por alguns segundos. Ele fica incomodado, mas me encara também.
Tem um ar falso de inocência.
Não é pavoroso, mas também não tem aparência afável.
Não é bonito nem feio.
Às vezes parece carente e esfaimado.
Outrora se comporta com uma insolência assustadora.
Continuo desconfiada. Tenho uma sensação estranha de que aquele bichinho não é boa companhia...
E ele vai ficando. Pede-me que o alimente...
Está realmente faminto.
Segue-me em todo canto. Vela meu sono, mexe nos meus sonhos, altera meu apetite, conversa com meu estômago, fecha meus olhos, muda os móveis de lugar, esconde meus óculos, acaba com meu cigarro, sacode meu humor, mata meus conceitos, ri das minhas lágrimas, vasculha minhas gavetas, compõe sambas, me chama de querida...
Agora ele faz tudo que quer. Parece dono desta casa e da minha vida.
E eu já o conhecia só que não me lembro de onde.
Mas, se ele me mostrar os dentes eu tenho certeza que consigo lembrar.

Ilustração de Chiara Bautista