sábado, 3 de março de 2012

... demasiado humano


O cachorro é feio e simpático igual ao dono. Chama-se Zé – o cachorro. Passeia satisfeito entre ébrios de respeito. Abaixa a cabeça me oferecendo o dorso para um carinho quando o cumprimento: “Oi Zé, bonitão!” E ele está feliz da vida pelo banho recém-tomado.

Logo ali, ao lado, está a figura aposentada que passa os dias à espera de alguém que lhe peça uma informação, um favor ou uma lembrança. Ficam em pé, encostados no meu portão, copos e garrafas sobre o muro em uma eterna confraternização improvisada que já se organiza em Associação: a eleição do presidente é barulhenta no sábado à tarde em meio à fumaça do categórico churrasquinho de meio-fio e a balbúrdia dos associados plenos de uma insólita embriaguez democrática.

A mulher de meia idade, cabelos tingidos de um loiro-pastel-desbotado, batom vermelho manchando o dente e esmaltes de três semanas completa o cenário do bom e velho “boteco copo-sujo”. Ela se senta em uma mesa central em companhia anônima, onde pode ver e, principalmente, ser vista por todos. É a rainha da noite que chega com mais alguns, cortejada pelos mais inspirados que lhe declaram amor eterno respeitosamente em pé e sem se apoiar em nada – o que, a esta altura, já é um grande feito. E ela se desfaz em sorrisos de manchas rubras, majestosa em seu batom implacável, e responde com cadência e irreverência sem maltratar o pretendente nem se render aos seus encantos.

Eis que tal atmosfera literária contamina toda a rua: o padeiro com seus cabelos de moleque; o verdureiro de mãos firmes; o japonês da floricultura que observa tudo com espanto e reprovação e cada espírito humano que já esteve enterrado em paragens mais sombrias se regozija com a felicidade vulgar do bairro popular.

Olhares distantes tentam me convencer de que no bar não tem poesia. Que os dentes manchados de decadência são feios e nojentos; que a enorme barriga do dono do Zé é patética e imbecil; que uma Associação dos “Amigos do Bill” é um insulto aos moldes sérios dos canais democráticos de participação popular; que o pequeno Zé está infestado de perigosas pulgas e carrapatos e que o homem aposentado está em um quadro avançado de depressão.

Quem vê de longe não vê tudo... A poesia se esconde desses olhares acostumados ao desfile perfeito de manequins de carne-osso-e-chatice das paragens sintéticas da classe média.

No bar, a poesia inflama as mais sérias discussões políticas, os rumos do país, o abraço irmão, a queda de um ou outro regime, a dor de amor, a morte, as divergências aumentam o volume das vozes e Deus entra na peleja “protegendo-e-guiando-todos-nós-amém”. Filósofos elaboram refinadas críticas à globalização, as redes sociais e ao baixo nível dos chats de bate papo. Um homem conta comovido sua última visita ao urologista e o grupo se compadece – segundos de silêncio. E, de repente, todos os olhares voltam a brilhar num espetáculo coletivo de torpor e encantamento quando a vizinha passa. A alegria reina, todos os copos se enchem e no mundo já não existe urologistas.

A poesia se embriaga, faz um gesto obsceno e tira a decadência pra dançar.

Que belos contos contaria o Zé se pudesse.

2 comentários:

Poeta Mauro Rocha disse...

Show esse texto, quantos não são zé-cachorro?

Tenha uma ótima semana.

Sensibilidade a navegar com poesias disse...

Parabéns pelo lindo Blog,,,se gosta de poesia me visite...