quinta-feira, 14 de julho de 2011

Querida Nina,


Como você está? Espero que esteja bem...

Ficamos muito contentes de receber sua carta e saber que você está se adaptando bem aí.

Eu estou bem aqui... todo fim de tarde me sento nos degraus de madeira esperando o inverno chegar, embora já tenha entendido que aqui o frio é de mentira. Tento não pensar na distância, mas as vezes me entristeço a ponto de explodir em choro e chatice até incomodar dois estados inteiros.

Nunca mais tingi os cabelos e tenho visto uns fios brancos quando vou secá-los – sempre me lembro de você e penso nos comentários que faria se visse minha velhice chegando.

Abelardo andou extremamente desconcertado por causa da cegueira e tenta disfarçar a todo custo, embora seus olhos estejam cada vez mais leitosos e ele vacile cada vez que tenta descer os degraus da cozinha. O que lhe devolveu o bom humor foi um novo amigo que chamamos de Mateus – um vira-latas marrom que faz xixi na cozinha e passa as tardes com Abelardo descobrindo o quintal, sempre muito paciencioso e tolerante com as manias do amigo cego. Quantos anos tem o Abelardo?

Dona Pompeia está cada vez pior da memória e toda semana me pergunta por você quando está varrendo o quintal. Antes eu sempre dizia a verdade, depois comecei a brincar de contar uma história diferente a cada vez que ela aparecia. Até que um dia disse que você fugiu com um cigano e ela simplesmente virou as costas e saiu arrastando a perna direita enquanto resmungava que sempre soube que isso aconteceria. Contei ao Rui e ele me repreendeu por estar confundindo ainda mais a cabeça da pobre dona Pompeia, por isso parei com a brincadeira – mas agora ela acredita em qualquer história que eu conte, menos na verdade e sempre me pergunta pelos ciganos. Você conhece algum cigano, Nina?

Carla vai se casar com aquele rapaz que trabalha no banco. Os dois aparecem toda quarta-feira com uma garrafa de vinho ou um bolo de cenoura e sentamos na varanda pra conversar e ouvir seus discos.

Rafael está fazendo faculdade e descobrindo as misérias da vida acadêmica, mas sempre aparece também pra brincar com Abelardo e pegar livros do Rui. Disse-me que está apaixonado por uma garota e que não tem a menor ideia do que fazer com isso.

A casa continua sendo de todo mundo do jeito que era quando você estava aqui, embora não tenhamos mais seu violão. A cidade toda acompanha suas publicações e espera sua visita.

Dia desses, estava voltando do cinema sozinha e pensei que seria assaltada, mas o sujeito me recitou um poema de rua. Você tinha razão, Nina: há tanta vida no meio-fio e quase nada naqueles corredores que agora também me acusam de.

Até que estou me virando bem entre tantos técnicos-fantoches-de-pano-e-de-vaidades, mas você sabe que isso cansa pra cacete, pois também já foi uma forasteira.

Continuo apaixonada, acredita? Descobrimos que é muito bom cuidar um do outro e ele ainda me abraça três vezes ao dia como fazia meio sem querer quando nos conhecemos.

Estou quase terminando meu livro e quero que você seja a primeira pessoa a ler. Gostaríamos muito que você viesse passar o Natal conosco e acredito que até lá o livro já estará concluído.

Dizem por aqui que você vai publicar uma crônica sobre seus 80 anos e estamos todos muito ansiosos.

A propósito: feliz aniversário! Espero que goste do presente – foi o Rui que escolheu, pois disse que você gosta da cor verde.


Abraços,

Ana.


PS: as luzes continuam acesas.



Imagem de Andy Kehoe

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