quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Um começo que não veio*

Antes era a inércia. Depois ficamos mais fortes, fugimos, voltamos e optamos pelas relações interpessoais saudáveis. Teve terapia, bom senso, atividade física, amizade verdadeira, comedimento, respeito e solidariedade. A estabilidade nem era tão ruim assim. A sanidade mental se transformou em um reino confortável e simpático onde confraternizávamos com um estilo sofisticado de abraços plenos de sensibilidade que parecia amor. Acordamos transformados em seres tranquilos que viajam juntos, se alimentam bem e bebem com moderação enquanto conversam amenidades. Rondava-nos um abismo volátil que se liquefazia em copos quase limpos. As vezes ficava um pouco escuro e essa quase-escuridão era boa. A nostalgia, as angústias, os medos e nosso existencialismo afetado nos cumprimentavam tímidos, pedindo espaço na mesa, mais um copo, por favor... Perdíamo-nos – apenas temporariamente – depois tomávamos um banho, ouvíamos músicas sutis, peças de teatro, a arte nos salvará de todo mal, amém, outro corte de cabelo e o bom comportamento se reestabelecia com louvor. Nosso assunto era trabalho, teorias, ideologias, atualidades e bons roteiros turísticos. O bar fechava as portas para nós e íamos embora com a frágil sensação de que o equilíbrio era a receita para uma boa noite de sono. Resguardados que estávamos por um universo cuidadoso, vivíamos a leveza da semiconsciência impune enquanto nada – absolutamente nada – acontecia. Mas a vida não permanece linear nem no mais perfeito ecossistema. Não que fosse tédio, mas nós sempre soubemos que em algum momento mandaríamos tudo isso à merda. Pedimos outra saideira, mudamos o rumo da prosa, choramos e nos armamos de coragem. Que perigo... Não temos certeza, mas parece que alguém tentou avisar “cuidado, coragem não presta”. O discurso era ruim e a cerveja era gelada. A realidade foi ficando escorregadia, a cadência de nossos passos instituiu um destino aparentemente certo e o caos usou a iluminação exata para se instalar numa varanda ansiosa deste verão apocalíptico. Decretamos oficialmente o fim do mundo. Decretamos insistentemente durante uma noite inteira a morte da poesia e a instituição imediata de nós mesmos como entidades soberanas do amor. Dois dias depois, a destruição era aterrorizante. Balde, água, escova, vassoura, pano de chão, desinfetante, tirar as cortinas, lavar as almofadas, esfregar as paredes, o chão, as cadeiras, trocar a lâmpada e o resto vai pro lixo. Limpamos a cena do crime. Acordamos transformados em seres imaculados pela manhã.

*Tristeza não – Metá metá



Imagem: Obra de Salvador Dalí inspirada na Divina Comédia de Dante Alighieri

2 comentários:

Evaristo disse...

Orra...

Dani Santos disse...

um filme.
a sutileza dos gestos, o silêncio das palavras que vão se gastando aos poucos, até serem outra coisa.

... um corpo que se abre... dois corpos que se abrem. lentamente, ao estranho impossível do mundo.
o medo imperceptível sobre as mesas e a distancias exatas, milimetradas. até o limite máximo da dúvida, o extremo onde tudo ultrapassa a si mesmo, irreparavelmente. epifania.
um corpo cai. dois corpos caem. o medo, a fome, a carne, o tédio, frio.
de uma complexidade úmida.
haverá agua pra todas as feridas?