quarta-feira, 15 de abril de 2009

Deserção


Sim, camarada... Estou desertando. Na verdade, nós já perdemos esta guerra há muito tempo. É suicídio continuar.
Já não temos armas e nosso corpo já não suporta sustentar o que até nossa memória abandonou.
Você ainda se lembra pelo que lutávamos? Nossa luta é inglória. O mundo condenou nossa ideologia.
Nós nem sabemos mais qual era a nossa causa... A paz? Não seja ingênuo, camarada... A paz não nos quer. Ela tem outras prioridades... Anda muito ocupada...
“Utopia” – você se lembra?
Deixe-me nesta vala, camarada... Está doendo bastante e eu não quero mais me levantar. Quero fechar os olhos e sonhar que nada disso aconteceu. Que nós nunca derramamos sangue e lágrimas... Que os destroços nem existem... Depois contabilizamos os prejuízos, camarada... Depois recolhemos os espólios. Agora, quero ficar aqui nesta vala... Ela é o único leito de um soldado caído. Ela é o descanso para quem a força não existe mais. Ela absorve o sangue que escorre das feridas abertas e agônicas do abandono.
É claro que dói, camarada...
Dói desertar...
Dói abdicar de uma paz que eu tanto busquei.
Mas, não dá pra continuar assim... A dor turvou meu entendimento. Os seus sinais e códigos secretos já não me permitem interpretação. Quando você acena pra que eu continue, penso que sinaliza pra eu recuar. É tudo inviável, até mesmo a comunicação. Eu já não sei mais lutar.
Não há vitória...
Apenas estampidos ao longe que me dizem que não vale mais a pena tentar...
Eu me perdi no meio de tantas batalhas, de tantas noites de vigília, de tantas datas oficiais e sobressaltos e alarmes falsos... Agora, veja o que sou: um soldado caído, ferido, cansado e letárgico... Você se lembra daquela sua letargia? Agora ela é toda minha... Sinto-me exausto e suas mensagens cordialmente impessoais já não me estimulam mais. Estou desistindo desta guerra de merda, ilustre soldado.
Espero que você faça o mesmo antes de se ferir tão gravemente...
Antes de ver em seu corpo as feridas que tenho em mim...
Antes de se transformar num espólio de guerra fatigado de dor no fundo de uma vala...
Sinto-me perdido e às vezes fica difícil diferenciar você, companheiro combatente... do inimigo que silenciosamente me ataca. Eu já nem sei se existe mesmo um inimigo, camarada...
Mas, se há... Deixe-me aos seus desígnios.
Deixe-me descansar nesta vala...
Eu acabo de desertar, nobre camarada.

6 comentários:

Zé, de sobrenome Forner disse...

A fé na redenção é a virtude dos fracos.
Por enquanto, que o campo de batalha dos não providos da fraca virtude seja povoado pelça constatação de valeu a pena!

Poeta Mauro Rocha disse...

Muito bem camarada!! Esse texto me lembrou Cuba e essa situação de embargo.Muito bom mesmo.

BJS

Anônimo disse...

"Nós nem sabemos mais qual era a nossa causa... A paz? Não seja ingênuo, camarada... A paz não nos quer. Ela tem outras prioridades..."

Ai, Ana Paula, tu sabes né? Esse texto também cabe a mim tão perfeitamente que eu sou capaz de perguntar de que cabeça saiu, se da minha ou se da tua.
Enfim, desertamos de verdade né?! :) Deve ser bom pra gente!
Veremos isso...

ika disse...

to ficando apaixonada por esse treco aqui!!
continue a escrever q eu continuo a ler!!

Quixote disse...

Paula,
É a primeira vez que tenho vontade, "camarada",de enfiar uma bala do "meu fuzil" na sua cabeça...
Porque sei que você está certa.
Porque sei que os anjos haverão de te resgatar e te devolver ao paraíso do qual nunca deverias ter saído...
Porque nunca se "interpreta mal" o sinal de uma bala no peito...
E se você a tem, também eu não tenho glória nisso...
Já que perdi você, soldado...
Já não me importo em perder a guerra.
Quixote.

N. Ferreira disse...

Querida Ana,
Contextos são contextos. E digo, bons textos assim não leio todo dia.
Como disse, desconheço o contexto. Mas pude me transportar ao cenário de sua guerra, sinto que já batalhei nela, desertei também, voltei a lutar.
A nobreza do bicho-homem, o que nos diferencia dos macacos, é nossa capacidade de saber parar. Talvez seja esse nosso aprendizado de uma vida toda. Enfim, adorei o blog e voltarei mais vezes.
Um beijo