sábado, 26 de julho de 2014

O defeito da esquerda

Quem deixou a porta aberta?
Esqueceram de desligar o gás. Confirmou por engano. Assinou sem ler. Dormiu quase o tempo todo. Pensou que estivesse pronto. Perdeu o sono, o ônibus e as contas.
Dizem que ficou louco. Feito Sartre, um viajante sem bilhete. Atravessou a vida por engano e guardou tão bem os traços do destino para não perder que esqueceu onde, em qual gaveta, uma pasta qualquer cheia de outros manuais velhos e pouco instrutivos.
Saiu sem avisar, andando rápido para não flagelar a perna ruim. Tentou documentar os anos errantes com um romance nunca acabado que rabiscava no fundo de restaurantes insalubres do interior. Enviou alguns capítulos pelo correio à um escritor do sul que tentou fazer chegar-lhe a resposta conclusiva de que se tratava da pior tentativa literária dos últimos tempos, mas a carta nunca o encontrou.
Uma noite de outubro de 2008, depois de dirigir quase doze horas ininterruptas com muita carga, tive a impressão de vê-lo atravessar um cruzamento melancólico da entrada de uma cidadezinha ao norte. Entrou em uma dessas casas de luz amarela e janela de madeira, pisando o degrau com firmeza para levantar a outra perna em um movimento brusco do corpo. Parece que mancava mais.
Aquela noite não dormi, apavorado, e quis viajar mais doze horas direto para casa.
Minha mãe sempre olhava sua foto na parede da cozinha com um certo embaraço enquanto coava o café:
 - Nem a bengala ele levou...
Essa frase combinava com o cheiro nostálgico que subia do coador de pano e com o suspiro constrangido que subia da minha mãe em seu casaco de lã vermelho. Mas não combinava com um homem manco que atravessava o cruzamento melancólico de uma cidadezinha ao norte, por isso, nunca contei a ela.
No começo eu pensava em procura-lo até o fim do mundo, pegá-lo pelos cabelos e arrastá-lo de volta com toda a autoridade conferida a mim pelo papel extenuante de consolar minha mãe. Depois, resignado até certo ponto, fiquei dramático: fantasiava encontra-lo feliz e gordo, bem vestido e amado e, num ato de derrota e abandono, apenas entregar-lhe a maldita bengala.
Mas, desde que comecei a trabalhar com o caminhão, já não o procurava, embora pensasse sempre que iria encontra-lo casualmente rabiscando seu romance ruim em um desses restaurantes onde as vezes faço algo parecido com uma refeição.
Em janeiro do ano passado, encostei em uma lanchonete modorrenta da insólita cidade de Monjolos, no interior de Minas, com um calor dos infernos a torturar a todos, amaldiçoando o sol e a ausência total de uma brisa que fosse. Então, senti o minuano da serra invadir meu estômago embrulhado quando vi um homem de costas cuja altura oscilava ao andar, diminuindo ao pisar com a esquerda, com um início de calvície discreta, entrando no banheiro de divisória precária aos cinco metros de mim. Eu poderia entrar no banheiro, arrebentar portas e descobri-lo esvaziando as tripas em um vaso imundo. Poderia espera-lo em frente a pia antiga de ferro e cumprimenta-lo com a naturalidade de quem reencontra um companheiro de estrada. Poderia ficar sentado na cadeira de lata com meu prato de arroz, feijão e bife de porco para vê-lo sair mancando e segurar o canto da divisória assustado ao parar repentinamente por me ver e falsear o passo com a esquerda.
Mas o calor de Minas, o frio do estômago, aquela divisória, as horas no caminhão e o cheiro de cebola frita não me permitiram nada. Os sons foram ficando muito distantes, as mãos dormentes, os olhos pesados e a lanchonete inteira foi se liquefazendo em volta do meu desespero. Olhei até o último segundo para aquela divisória antes de desmaiar sobre a mesa de lata e ser socorrido por companheiros de estrada que riam de minha palidez e faziam piada sobre o poder mórbido da refeição servida.
Nunca vi quem saiu de traz daquela divisória em Monjolos. Vasculhei-o e as proximidades, perguntei aos quatro cantos, percorri ruas em total descontrole seguido por companheiros preocupados que afirmavam que eu havia enlouquecido igual ao meu irmão.
Voltei para estrada e depois para casa. Rodando os óculos na mesa enquanto minha mãe coava o café, acompanhei seus olhos para a foto e, pela primeira vez em muitos anos, sua lamentação não morreu em um suspiro:
 - Nem a bengala... Ele nunca ficava sem ela. Era o que diferenciava vocês dois... Ninguém saberia dizer quem era um e quem era outro se não fosse o defeito da esquerda.
Duas semanas depois, ligaram de um centro de atendimento qualquer de algum lugar de Minas Gerais.
Morreu sem perceber.
Providenciei tudo para o transporte do corpo enquanto minha mãe chorava agarrada a maldita bengala.
No velório, era eu quem coava o café com uma ou outra tia sádica que comentava a semelhança do morto comigo no caixão.

 - Vocês eram iguaizinhos. Não fosse o defeito da esquerda...

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