terça-feira, 22 de abril de 2014

Subsolo

Depois de passar uma quinta-feira santa em trânsito, presa em aeroportos e engarrafamentos de dois estados, cheguei exausta e apreensiva à um refúgio localizado a 13km depois do fim do mundo. Em mim só havia cansaço e uma felicidade triste ao ver a cama de madeira com lençóis limpos e toalhas macias. Sem sinal de celular nem internet, até havia uma televisão, mas preferi o sono como promessa de recuperação para o dia seguinte.
A sexta-feira santa começou ensolarada e firme. Trilhas, guia, geologia, cheiro de mato, expectativas e uma fenda despretensiosa pela qual me espremi e mergulhei com meu humilde capacete luminoso.
No início tudo se sintetizava em umidade e escuridão. Havia uma certa ansiedade em movimentar a cabeça para todos os lados para que a lanterninha sobre minha testa pudesse me apresentar aos locais mais seguros para colocar os pés, não bater a cabeça, encolher os ombros, me curvar e me curvar mais um pouco até me sentar e esticar as pernas e me arrastar com o nariz muito próximo de uma superfície úmida e assustadoramente dura.
Visualmente, tudo ficou muito restrito. Eu estava dentro de um túnel de pedra onde não cabia muita coisa além do meu corpo desajeitado e contraído. Por algum motivo instintivo, procurei me concentrar nos sons, que se resumiam a minha respiração, aos corpos que se arrastavam a minha frente e a água em grande quantidade fazendo o trabalho milenar de continuar escavando a pedra em gotas ou como um turbilhão.
Foi neste momento que parei para respirar e sentir. Vi fumaça saindo da minha pele, senti as gotas que molhavam tudo em mim, senti a frieza da pedra que me envolvia em um abraço aterrador e a sensação física de que eu estava órfã. Havia uma presença incrível de morte na escuridão e no gotejar. Na superfície as pessoas deviam estar ouvindo música, dirigindo, brigando, comendo, andando, existindo... Ali, imobilizada por um chão que me encobria, a existência se restringia a respirar, ouvir e tentar enxergar um inseto pequeno e parecido com uma aranha que se escondia da minha luzinha imbecil. Na superfície, o parente de aranha poderia não ser companhia agradável, mas embaixo da terra eu o elegi como cúmplice e anfitrião. Habitante exclusivo daquela dimensão paralela, ele parecia apenas se exibir para os visitantes como exemplo de vida subterrânea.
Ao me arrastar mais alguns centímetros senti que a terra abandonava minhas pernas. Meus pés, suspensos, ainda não podiam encontrar onde o chão se escondia, mas minhas pernas já sentiam algo como ar se movimentando com euforia. Mais um pouco, e alcancei a galeria pequena e parcialmente submersa que ampliava o alvoroço da água descendo em fúria. Espuma branca escandalosa que subjugava a rocha para se transformar logo à frente em uma piscininha calma que escoava por aqui e por ali, pingando, esculpindo, acarinhando e rindo dos meus olhos arregalados de susto e encantamento.
Lá em cima as pessoas continuavam vivendo, alheias ao inseto amigo, à força da água, à escuridão do mundo e à minha orfandade. Na superfície as pessoas existiam alheias à morte que nos acompanha no gotejar subterrâneo.
Ao emergir, o sol agrediu meus olhos e o vento recebeu meus cabelos com um afago. Todo meu corpo doía, mas havia algo de abandono que doía um pouco mais.

Na noite fresca dessa sexta-feira santa, enquanto eu esticava os músculos doloridos das pernas, o Jornal Nacional (estúpido e atrasado) noticiou: Gabriel García Márquez morrera no dia anterior enquanto eu me irritava com aeroportos e engarrafamentos. Horas antes, o subsolo, com um abraço afetuoso e condolente, já havia comunicado minha orfandade.     

Um comentário:

Gugu Keller disse...

Belíssimo, sensibilíssimo e muitíssimo bem escrito! Meus aplausos!
GK