Depois de passar uma quinta-feira
santa em trânsito, presa em aeroportos e engarrafamentos de dois estados,
cheguei exausta e apreensiva à um refúgio localizado a 13km depois do fim do
mundo. Em mim só havia cansaço e uma felicidade triste ao ver a cama de madeira
com lençóis limpos e toalhas macias. Sem sinal de celular nem internet, até
havia uma televisão, mas preferi o sono como promessa de recuperação para o dia
seguinte.
A sexta-feira santa começou
ensolarada e firme. Trilhas, guia, geologia, cheiro de mato, expectativas e uma
fenda despretensiosa pela qual me espremi e mergulhei com meu humilde capacete
luminoso.
No início tudo se sintetizava em
umidade e escuridão. Havia uma certa ansiedade em movimentar a cabeça para
todos os lados para que a lanterninha sobre minha testa pudesse me apresentar
aos locais mais seguros para colocar os pés, não bater a cabeça, encolher os
ombros, me curvar e me curvar mais um pouco até me sentar e esticar as pernas e
me arrastar com o nariz muito próximo de uma superfície úmida e
assustadoramente dura.
Visualmente, tudo ficou muito
restrito. Eu estava dentro de um túnel de pedra onde não cabia muita coisa além
do meu corpo desajeitado e contraído. Por algum motivo instintivo, procurei me
concentrar nos sons, que se resumiam a minha respiração, aos corpos que se arrastavam
a minha frente e a água em grande quantidade fazendo o trabalho milenar de
continuar escavando a pedra em gotas ou como um turbilhão.
Foi neste momento que parei para
respirar e sentir. Vi fumaça saindo da minha pele, senti as gotas que molhavam
tudo em mim, senti a frieza da pedra que me envolvia em um abraço aterrador e a
sensação física de que eu estava órfã. Havia uma presença incrível de morte na
escuridão e no gotejar. Na superfície as pessoas deviam estar ouvindo música,
dirigindo, brigando, comendo, andando, existindo... Ali, imobilizada por um
chão que me encobria, a existência se restringia a respirar, ouvir e tentar
enxergar um inseto pequeno e parecido com uma aranha que se escondia da minha
luzinha imbecil. Na superfície, o parente de aranha poderia não ser companhia
agradável, mas embaixo da terra eu o elegi como cúmplice e anfitrião. Habitante
exclusivo daquela dimensão paralela, ele parecia apenas se exibir para os
visitantes como exemplo de vida subterrânea.
Ao me arrastar mais alguns
centímetros senti que a terra abandonava minhas pernas. Meus pés, suspensos,
ainda não podiam encontrar onde o chão se escondia, mas minhas pernas já
sentiam algo como ar se movimentando com euforia. Mais um pouco, e alcancei a
galeria pequena e parcialmente submersa que ampliava o alvoroço da água
descendo em fúria. Espuma branca escandalosa que subjugava a rocha para se
transformar logo à frente em uma piscininha calma que escoava por aqui e por
ali, pingando, esculpindo, acarinhando e rindo dos meus olhos arregalados de
susto e encantamento.
Lá em cima as pessoas continuavam
vivendo, alheias ao inseto amigo, à força da água, à escuridão do mundo e à
minha orfandade. Na superfície as pessoas existiam alheias à morte que nos
acompanha no gotejar subterrâneo.
Ao emergir, o sol agrediu meus
olhos e o vento recebeu meus cabelos com um afago. Todo meu corpo doía, mas
havia algo de abandono que doía um pouco mais.
Na noite fresca dessa sexta-feira
santa, enquanto eu esticava os músculos doloridos das pernas, o Jornal Nacional
(estúpido e atrasado) noticiou: Gabriel García Márquez morrera no dia anterior
enquanto eu me irritava com aeroportos e engarrafamentos. Horas antes, o subsolo, com um
abraço afetuoso e condolente, já havia comunicado minha orfandade.
Um comentário:
Belíssimo, sensibilíssimo e muitíssimo bem escrito! Meus aplausos!
GK
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