quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Is This Love


O pequeno relógio observa tudo atentamente em cima da cômoda do quarto. Seus ponteiros cruéis acusando-os da vida que perderam. É um inquisidor, mas abrandou suas palavras diante do fim que constrange até o mais insensível dos objetos que, após testemunhar todos os erros e acertos e brigas e reconciliações, instituiu-se juiz de um tribunal sem contas.
Enquanto o casal tenta estupidamente eleger um culpado pela desventura, o relógio se distrai olhando entediado a disposição dos CDs meticulosamente separados. Do lado esquerdo os dela – ótimos. Ela tem um excelente gosto musical. Do lado direito os dele – patéticos.
Como ela suportou aquelas canções medíocres por tanto tempo?
Pois é... Is this Love.
O amor suporta até o pior dos gostos musicais.
O silêncio do samba que não está tocando incomoda o casal e o relógio grita para que acabem logo com aquela cena deprimente. Sabem que é hora de romper.
O que ela ainda está fazendo ali?
Terminando seu cigarro.
O relógio pensa que, se for pra culpar alguém, que seja ela.
Por que a moça havia de querer ser feliz? Não precisava. Numa relação daquelas a felicidade era algo absolutamente dispensável.
Malditos sambas bons... cúmplices dela neste crime de alegria.
Ela está maquiada. Ele sabe que ela não vai para casa. Vai sair. Com quem? Amigas que vão consolá-la num bom bar.
Malditas amigas. Vão convencê-la de que foi melhor assim, de que a relação já estava sendo destrutiva há tempos e vão pôr a culpa nele.
O relógio pede para ir com ela, para que possa defendê-lo das acusações injustas das amigas.
Ele não vai se consolar com ninguém. Vai ficar ali. Talvez ouvindo alguma música ruim...
Talvez chore.
O relógio poderia muito bem defendê-lo no bar, mas é incapaz de consolá-lo. Daí já é demais!
Não é possível! Será que ela acendeu outro cigarro ou ainda é o mesmo que conspira contra a libertação e insiste em não acabar nunca?
O relógio a repreende. Como ela pode fumar num momento assim?
Como pode se dar ao luxo do prazer no instante em que deve unicamente sofrer?
A culpa é dela mesmo. Egoísta.
Por isso está chorando. De remorso.
Ele não chora.
Sabe que continuará sendo a mesma pessoa que vive e sonha e dorme e acorda e trabalha e morre todos os dias. Só que agora não terá mais uma testemunha ocular que lhe sorri à tarde quando chega do trabalho e que bebe cerveja com o maior prazer do mundo e que canta alto um samba do Zé Keti pelos corredores da casa enquanto procura os óculos batucando nas portas.
Nunca mais o Noel há de cantar dentro dessa casa.
Agora pelo menos vai poder dormir melhor.
Nunca dormiu bem ao lado dela.
Agora pelo menos aquele cheiro de cigarro vai desaparecer.
Vai jogar fora o cinzeiro de vidro.
Nunca mais haverá fumaça dentro dessa casa.
Ela coloca a bolsa no ombro e o abraça chorando.
O relógio desvia o olhar, mas todos os outros objetos choram com ela.
Os únicos que permanecem inexpressivos (ele e o relógio) são os que mais a amam e têm certeza de que a culpa foi dessa necessidade incontida dela de ser feliz.
Poderiam morrer juntos se ela não tivesse esses desejos pueris.
Poderiam ter tido um filho e ele até permitiria que o menino tivesse o nome do pianista que ela gosta.
Poderiam ter composto uma música juntos.
Poderiam ter escrito um romance.
Poderiam tantas coisas – por que ela não esquecia aquela bobagem?
Ele não ouve os passos dela na escada. Talvez ela ainda esteja parada do lado de fora.
Não.
Se estivesse ele a ouviria chorar. Porque ele sabe que ela está chorando desesperadamente agora, enxugando as lágrimas com as costas da mão esquerda enquanto a direita busca a carteira de cigarros dentro da bolsa.
Deixe que chore.
A culpa foi dela mesmo.

Um comentário:

Poeta Mauro Rocha disse...

É...quando a culpa é nossa é melhor nem chorar pelo leite derramado.

Gostei do texto.

BJS