segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Velha roupa colorida*


Uma caixa escondida no fundo da estante guarda sua infância anêmica. O piso já não é o mesmo e o antigo cão peludinho que contraditoriamente armava emboscadas brutais contra panturrilhas desavisadas embaixo das camas foi substituído por um vira-latas preto que ri de todo mundo deitado no canto da porta.

A cidade está cada vez mais empoeirada pelo tempo.

Os sofás onde os pretendentes das irmãs mais velhas afundavam perplexos diante da entrevista cruel do pai também foram substituídos por outros onde alguns namorados distraídos das irmãs mais novas sentam para uma cerveja de domingo e as piadas do pai inofensivo. O novo sofá já não protege o coração das filhas mais novas nem as condena ao casamento dos tradicionais valores da família cristã. Parece até que, por milagre, os tradicionais valores da família cristã foram esquecidos com a velha caixa na estante. Entre malandros e filósofos, hippies e índios, maníacos-depressivos e dependentes químicos, todos encontram no velho pai um companheiro de copo e de pesca. A casa foi ficando vazia de filhas durante a semana e repleta de estranhos aos sábados, com dois netos que passaram sem que ninguém percebesse dos carrinhos de bebês para o chão do quintal dali ou dos vizinhos. Os conflitos morais na cozinha foram substituídos por debates históricos no bar. Todos cresceram. Todos. E alguns já começam a morrer.

De repente, o mundo ficou assustadoramente maior – com aeroportos e empregos no meio do caminho. Ao invés de uma permissão ou bronca, o pai lhes deseja sorte, alheio ao passado silencioso dentro da estante e à imensidão que contaminou o mundo.

Seus dedos um tanto afetados vasculham as fotos antigas com uma discreta obsessão por descobrir quem havia sido. Desde que fora embora para tão longe havia adquirido essa falsa nostalgia romântica de quem optou pelo exílio como zona de conforto das relações pessoais.

E o mundo já não cabe em uma caixa de fotografias antigas.

E, de repente, o mundo ficou encantadoramente maior.


*“E o passado é uma roupa que não nos serve mais”

Belchior

2 comentários:

Patricia Taconi disse...

Oi Paula!

Que linda crônica (se assim posso chamar!). Me fez voltar à minha própria história, à minha caixinha de lembranças...é verdade que o mundo se abre e com ele, todas as possibilidades. Mas parece que tem vezes (e eu sou muito assim!) que a gente não quer largar, não quer abrir mão do que passou...essa semana mesmo me perguntei (como se não houvesse mais nada para mim): E agora? eu com trinta e três anos, o que o futuro me reserva? Fico me perguntando onde foi parar aquele brilho nos olhos e aquela curiosidade de quando eu tinha quinze anos...e sinto falta...
Desculpe...acho que o seu post me fez desabafar rs rs.
Um beijo linda, Deus te proteja.

Viviane Ferreira disse...

Achei que somente eu vivia o saudosismo com tanta intensidade! Também me pergunto...e agora? será que ainda há tempo?Quanto tempo já se passou... e o gozo das primeiras experienias ainda tão presente na pele!
É uma pena que a invenção da máquina do tempo não deu certo, pois poderíamos ter a oportunidade de voltar a viver momentos que foram marcantes em nossas vidas.