quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Das não-personas

Rabiscou uma guria magrela no  verso e a viu pedindo desculpas a si mesma. Quem seria essa pobre criatura que o incomodava a esta hora da madrugada? Qual seria seu conflito moral? Que roupas usaria? Que filmes gostaria de ver?
Ninguém viria à sua casa a esta hora. É óbvio que estava se escondendo...
Mas também não fazia muito sentido se esconder onde se cria. No papel, a gente vira gente.
Talvez tenha se perdido. Acabou caindo na folha em branco de um maluco insone, acendeu um cigarro, tomou um pouco do café e ficou se desculpando com frases pela metade até pedir sem jeito:
 - Deixe-me ficar.
Ficou. Ficou, antes de saber se ele deixava. Dobrou os joelhos e apoiou o queixo parecendo um pouco aliviada, mas ainda triste.
O dono do papel queria seu nome, seu conflito moral e duas ou três preferências.
 - Do resto eu dou conta.
O problema é que ela não tinha nome, nem moral nem conflito. Tampouco saberia dizer de algo que lhe agradasse.
 - Dá pra criar seu resto com isso?
O escriba coçou a cabeça... A garota era encrenca e não daria nem um conto. Ajeitou-se na cadeira, recolheu uns papéis da escrivaninha como quem está organizando o ambiente, imbuiu-se de uma expressão sábia e compreensiva e começou uma conversa muito sutil.
Ela riu sem alarde:
 - Por que você está agindo igual terapeuta?
Sentiu-se um imbecil, mas em seguida se deu conta da pequena vitória: já sabia que sua personagem não era burra nem dada à relações medíocres.
 - Por exclusão, talvez dê certo. Vamos descobrir quem você não é.
Ela coçou a cabeça... O escritor era encrenca e não daria pouso de graça. Derrubou a cabeça sobre os joelhos e fechou os olhos.
 - Deixe-me pensar...
Ele tentou oferecer uma poltrona de design pós-moderno e cores ousadas para que se sentisse confortável -  ela rejeitou como se fosse uma cadeira elétrica. Ele recuou para um aconchegante divã neoclássico de tendências sóbrias e tons pastéis, mas ela suspirou com tanto enfado que o convenceu a ceder-lhe simplesmente a única cadeira que ainda existia na cozinha.
Ela se sentou inexpressiva, com as pernas cruzadas sobre o assento gasto e a mão segurando o queixo enquanto ele esperava.
 - Onde você vive?
 - Não me lembro.
 - Você sofreu um acidente?
 - Muitos.
 - Do que você está se escondendo?
 - Dos traços de personalidade que se manifestam como uma resistência difusa em satisfazer expectativas de relações interpessoais ou envolvendo a execução de tarefas, caracterizados por atitudes negativas indiretas e oposição velada.
 - Todos estamos, querida...
Ela deu de ombros, ele deu um trago e tentou de outra maneira:
 - Você tem 26 anos, não estuda, é pobre, trabalha em um restaurante no centro velho da cidade. As vezes vai trabalhar de bicicleta, mas nunca foi assaltada...

Mora sozinha com um cachorro chamado Jairo em uma casa pequena e sem cor. Alimenta-se mal, transa com frequência e acabou de descobrir que está grávida de um sujeito meio calvo chamado Jairo que conheceu mês passado no ponto de ônibus. Não gostou dele, mas resolveu convidá-lo para um café porque seu cachorro ia gostar de conhece-lo.

 - Enfim, a perspectiva era literária e você transou com o sujeito enquanto o Jairo comia o resto da esfiha fria que ninguém quis.
Ela suspirou de novo, mas em seguida mudou a expressão para não ofendê-lo.
 - Eu poderia apenas ficar?
 - Não. Você precisa existir.
 - Tenho 26 anos, não estudo, não tenho grana, trabalho em uma lanchonete na parte caída da cidade, para onde as vezes vou de bicicleta para economizar... 

Divido aluguel de uma casa pequena e sem cor com um frentista chamado Clóvis. Ele fuma maconha e come várias mulheres. Coloco fones de ouvido todas as noites para não ouvi-las gemer...

 - Desculpe, não pretendo escrever sobre um “Clóvis, o viril”.
 - Merda.
 - A senhorita...?
 - No mês passado fui estuprada quando voltava para casa de bicicleta e talvez esteja grávida, ou com HIV, ou as duas coisas.
 - Trágico demais, não?
 - É.
 - E o Clóvis?
 - Viril.
 - E agora?
 - O que?
 - O que você vai fazer?
 - Sei lá. Você disse que o resto era contigo.
Ficaram em silêncio por algum tempo. Ele nunca seria um bom escritor e ela definitivamente não nascera pra grande personagem.
Ela fumou e ele tentou escrever até as cinco da manhã. Depois dormiram, depois voltaram, depois viram um filme do Bergman e comeram comida chinesa. Saíram para beber em um bar do outro lado da rua. Ele a fez usar uma camiseta branca ridícula e lavar os cabelos. Imbuiu-se do mais pleno comportamento de resistência difusa em satisfazer expectativas de relações interpessoais que um mau escritor é capaz.
 - Você é a única mulher que não me rende sexo nem literatura.
Adormeceu sem perceber, amanheceu sem vontade e passou o dia a procura-la em seus rabiscos deprimentes de não-inspiração ou em seus parágrafos tristes de escritor medíocre.
Dizem que, 10 anos depois, foi encontrado morto nos fundos de um restaurante da parte velha do centro, abraçado ao manuscrito de um dos maiores romances da literatura contemporânea, sua única e inestimável obra: Passive-aggressive – onde contou com maestria a belíssima história de uma jovem de 26 anos que descobriu a maneira exata de não ser.




Desenho: Marcos Yuji 

Um comentário:

Dani Santos disse...

ainda sem fôlego aqui.